quarta-feira, 13 de abril de 2011

O fracasso de um sucesso.

Por Eduardo Ribeiro dos Santos

Cinquenta anos após a Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU e quarenta anos após a declaração do presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, de Guerra às Drogas, as agências internacionais, governos, movimentos sociais e intelectuais têm promovido reflexões acerca das consequências de cinco décadas de proibicionismo. Busca-se apontar um fracasso dessa estratégia a nível mundial, que se reflete em altos níveis de violência, aumento do consumo e perda da qualidade de vida de usuários. Este artigo pretende refletir na direção contrária: sobre o sucesso da política de drogas no mundo hoje. E explicarei porque.


Consideremos de início, o surgimento de uma questão das drogas como um problema social.


No final do século XIX, emerge de influentes setores da classe média norte-americana um discurso de perseguição à população imigrante e negros nativos pobres, maioria da classe trabalhadora do país, que identificava a origem étnica e racial ao consumo de drogas e a práticas consideradas criminosas. Negros eram associados à cocaína, latinos ao consumo da cannabis (maconha) e europeus (sobretudo, irlandeses) ao álcool. Ao mesmo tempo, interesses dos Estados Unidos no Oriente, oportunizados pela mediação dos conflitos entre ingleses e chineses na questão da produção de Ópio, resultaria na primeira grande convenção internacional sobre o tema na virada do século: a Conferência de Xangai, em 1909. Onze anos depois, Woodrow Wilson assinava nos EUA a primeira medida proibicionista de nossa história, a Volstead Act, a Lei Seca1. Iniciava-se ali as bases formais de uma estratégia ainda mais perversa.


Nas academias, nos círculos de poder, entre os setores dirigentes das principais potências do mundo no final do século XIX, a questão da raça era um componente fundamental das formulações liberais. Naquele momento, buscava-se na construção cientifica de uma hierarquia entre as raças, a legitimação de um processo expansionista para o capital. A idéia de civilização buscava solucionar a degeneração da humanidade a partir de uma visão de embraquecimento e ocidentalização. Essas idéias, a princípio deslocadas do debate sobre drogas no mundo, estão na origem do discurso proibicionista. Associam a elas, a necessidade do bem comum, do combate a práticas desviantes e a moralização da sociedade para o espírito do capitalismo; estimula-se na academia a idéia de classes perigosas. Dá-se início a um dos pilares da política anti-drogas no mundo: a criminalização. A um conjunto da população, direcionam-se mecanismos de coerção
social para a manutenção do bem estar.


Paralelo a isso, as práticas terapêuticas ocasionadas pelo avanço da biomedicina, estimulavam a sobreposição dos saberes médicos científicos a todo o conjunto de conhecimentos não-acadêmicos. A medicalização da vida serviu de estímulo ao controle de drogas sob o discurso da legitimidade de um tipo de conhecimento (a ciência) sob práticas culturais e religiosas tradicionais em muitas culturas.


A expansão do capitalismo imprimia ainda um conjunto de posturas morais sob as quais a sociedade viveria em julgo. A maximização da produção, a superexploração da classe trabalhadora, o acúmulo capitalista estava associada a necessidade de domesticação para o trabalho. E o discurso contra as drogas ganha um outro elemento discursivo: a moralização.


Atuavam em conjunto ali, ao menos essas três estratégias discursivas que alimentavam o proibicionismo, enquanto os mecanismos formais eram estabelecidos nos círculos de poder internacionais: a moralização, a criminalização e a medicalização.
No Brasil, onde a produção do cânhamo havia sido estimulada durante o império2, a perseguição ao consumo da maconha por exemplo é componente de um conjunto de medidas que, associando raça, práticas culturais e drogas, visavam limitar a ascensão da população egressa da escravidão a uma condição de cidadania. A repressão à vadiagem, à capoeira e ao candomblé e à umbanda naquele momento, são outras facetas desse conjunto que aprofundou a institucionalização do racismo no país.


Na primeira metade do século, os Estados Unidos já puderam experimentar os efeitos imediatos do proibicionismo no mercado do álcool. A medida teve um efeito visto como desmoralizante para as autoridades naquele momento. Foi um estímulo à corrupção e a população viu a criminalidade explodir em cidades como Chicago e Nova York, enquanto a máfia enriquecia com o contrabando de álcool. A princípio, fracassou.


Três décadas depois, em 1961, os Estados Unidos é o principal país a patrocinar uma ação global de política sobre drogas com o objetivo de proibir a produção, fabricação, exportação e importação, comércio, posse ou uso de entorpecentes como meio mais eficaz de proteger a saúde e o bem-estar público, apenas mantendo à limitação exclusiva a fins médicos e científicos. "Julgando que essa atuação universal exige uma cooperação internacional, orientada por princípios idênticos e objetivos comuns", a política de guerra às drogas soma-se às ações da expansão imperialista sobre os países da chamada periferia do mundo.


A ditadura no Brasil aprova a Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU em 27 de agosto de 64, reconhecendo que aquele documento viria substituir os trabalhos existentes sobre entorpecentes como previsto no seu preâmbulo.


A guerra internacional às drogas carrega a partir daí um outro traço discursivo exemplar do seu caráter imperialista. A idéia de países produtores e países consumidores é a premissa para a intervenção militar. A partir dali, acordava-se o direito às potências mundiais de intervir nos Estados considerados os grandes vilões do tráfico internacional em prol da estabilidade e da segurança nacional e continental. Uma ofensiva estado-unidense é lançada sobre a América Latina, e sob o discurso de combater o tráfico, os EUA ocupam territórios, patrocinam golpes e impõem medidas aos governos do continente. A situação colombiana e mexicana da atualidade está intimamente ligada a essas questões.


Uma reflexão sobre os efeitos dessa generalização da postura em relação às drogas no mundo hoje a partir do proibicionismo, nos fará refletir ou sobre o enorme fracasso das políticas ou o singular sucesso de um conjunto de práticas e teorias que são muito mais antigas que a própria idéia de drogas como um problema social.


Voltando ao virtual fracasso da Lei Seca nos Estados Unidos, encontramos outros argumentos que não podem ser invisibilizados. Um olhar atento ao exponencial crescimento da população carcerária nos Estados Unidos a partir daquele momento, com o aprisionamento em massa de jovens negros e mexicanos, nos dá a idéia de um momento histórico de acirramento da luta de classes naquele país. A conjuntura econômica desastrosa da década de trinta arrochou direitos, oportunidades, e tanto o encarceramento, como o envio de tropas às guerras, passa a ser uma política de Estado eficiente para as minorias, buscando aliviar a pressão por empregos e preservar capital político das classes dirigentes. O fracasso atribuído a repressão, que não eliminou o tráfico e não diminuiu o consumo, foi eficaz para um conjunto de interesses da sociedade estado-unidense que, sob o discurso do bem estar público, alimentou estigmas, incentivou o ódio racial e promoveu o
aprisionamento em larga escala de uma grande conjunto de seus cidadãos e cidadãs. Meio século depois, chegamos a situação onde 1 entre cada 9 afro-americanos entre 20 e 34 anos está preso. Os Estados Unidos com 5% da população mundial, tem 25% da população carcerária e é o país que mais gasta com a política de guerra às drogas. Um trilhão desde a declaração de Nixon3. (Não custa lembrar o lucrativo mercado prisional naquele país. As penitenciárias são privatizadas).


No Brasil, a exemplo de outros países do continente, a situação carcerária mantém relação estreita com as relações de classe, raça e geracional. O encarceramento em massa é característico da nossa idéia de segurança pública. Nem a sofredora situação de superlotação dos presídios comove o público para uma mudança de paradigmas sobre as nossas leis. A replicada morosidade da justiça como motivo dessa superlotação, esconde que há mecanismos institucionalizados de coersão social baseados em critérios raciais. Mais uma vez, o alegado fracasso de reprimir à ilegalidade, combater a violência e diminuir o consumo, convive com o sucesso estratégico de uma classe dirigente racista que, através do Estado brasileiro, atua para a manutenção do status quo, sob o julgo do capital.


Segundo a Infopen – Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça, de acordo com levantamento de 2009, mais de 86 mil pessoas estavam nas prisões por tráfico de entorpecentes tornando-se o crime mais cometido no Brasil. O roubo qualificado, com mais de 74 mil presos, o furto qualificado e roubo simples, com quase 33 mil e o homicídio qualificado, com 29 mil completariam a lista de condenações e processos judiciais em andamento no país. O maior número de presos no país pertenciam à faixa etária dos 18 aos 24 anos, totalizando 129 mil detentos em um universo de 473 mil. Dados como a prevalência de réus primários, a enorme quantidade de pessoas presas em flagrante sem portar arma de fogo e com pequenas quantidades de entorpecentes são característicos do tipo de crime que estamos reprimindo e qual conjunto da população é realmente alvo da repressão.
Não há grandes operações policiais contra o tráfico nos condomínios e conjuntos habitacionais da classe média. Nos bolsões de miséria dos grandes centros urbanos, jovens negros e negras são recolhidos às instituições prisionais como forma de alívio das tensões sociais causadas pela situação de desigualdade, de aprisionamento cultural e isolamento social para as periferias, no complexo projeto de exclusão que fundou o Estado brasileiro e moldou suas instituições jurídicas.


Reverberar o fracasso da guerra às drogas pode servir enquanto instrumento mobilizador, que revele a necessidade de alteração radical dos paradigmas que orientam as políticas sobre drogas ao redor do mundo. Pode servir como elemento que impulsione uma mudança de postura para a construção de um diálogo mais aberto, menos preconceituoso e mais atento à vida de nosso povo.


Mas um olhar atento nos revelará o sucesso de uma estratégia de dominação que hegemonizou o Estado brasileiro em toda a sua história. Que destinou a um conjunto da população, negra e pobre, uma deliberada política de exclusão e coersão. Ao contrário da opinião de que a desigualdade no Brasil tem origem na ausência de políticas de Estado para a população egressa da escravidão, o que verificou-se ao longo do século foi uma deliberada estratégia de exclusão sócio-racial, que incorporou a desigualdade como característica do Estado brasileiro e que é o que de fato devemos denunciar e alterar radicalmente na direção de um novo modelo de sociedade.




Eduardo Ribeiro dos Santos é estudante de história da UFBA e membro do Coletivo Ganja Livre.



1Na Europa, algumas medidas de caráter restritivo já haviam sido tentadas, como a restrição à produção de cerveja na Inglaterra em 1880.



2Através de decreto real, cria-se no Brasil (e em outras colônias portuguesas) a Real Benfeitoria do Linho Cânhamo,  matéria-prima para a preparação de velas e cabos para embarcações.

 
3Dados da Convenção de Viena – www.adeclaracaodeviena.com
Eduardo Ribeiro "Dudu"
1º Vice-Presidente da União dos Estudantes da Bahia

CEJAE-BA
http://coletivofranciscatrindade.blogspot.com/
 

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Postado por Walter no EngajArte

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