terça-feira, 19 de agosto de 2008

Nasce o poeta

Em solo humano
O nome é lançado
(Ou cai do acaso)

Uma aurora
Oculta num barulho

Uma pedra
Turva

A palavra
Dita entre ráfagas
De chuva
E lampejos na noite

Lobo

Um sopro
Um susto
Um nome
Sem coisa

O uivo
Na treva

O golpe
Na vidraça

É o vento?

É o lobo

A palavra sem rosto
Que se busca no espelho

Ou se busca um espelho?

Na lâmina das vozes
Perdidas no sonho

Na
Lâmina
Do
Sono

Da água
Sonora

Das coisas velozes

Só sabia o nome
Só sabia o medo
Que esse nome dava

Se era um mendigo
Um gigante um bicho
Isso não sabia

Mas fosse o que fosse
Viria do escuro
Viria da noite
Que oculta o mundo
A Rua da Alegria
E a mobília da casa

O que era aquilo
Debaixo da cama?

Uma coisa branca
Molhada asquerosa

O que era aquilo
Que não tinha nome?

Parecia um lobo
Mas não era um lobo

Parecia um bicho
Parecia um vômito

E que me espiava
Sem olho nem nada

Aquilo era o lobo

(A palavra lobo enfim encarnada)

A palavra
Estava
Dentro da folha

(Na quinta do Caga Osso)

Estava dentro
Da margarida
Uma
Borboleta
Dentro (a palavra)
Estava
Dentro
Do fruto

(na alva noite do açúcar)

E a folha
Dizia
Folha
A rosa
Dizia rosa

E a água
Em si mesma
Refletida
Seu próprio nome dizia
Rindo
Entre as pedras

Mas não havia
Ninguém ali
Para ouvi-las

E só por isso
Falavam

Se vinha alguém
Calavam-se


A manhã apaga
As perguntas da noite

As coisas são claras
As coisas são sólidas

O mundo se explica
Só por existir

A memória dorme

O presente ri

A moça baunilha
Uma flama negra
Na quitanda morna

Confunde o sorriso
Com o sorrir das frutas

Seu cabelo de aço
Era denso e bicho

Seu olhar menina
Vinha da floresta

Sua pele nova
Um carvão veludo

Sua noite púlis
Uma festa azul

Misturada ao mel
No calor da tarde
Duraram dois segundos?
Uma eternidade?

Era aquele cheiro
De casa de negros
De roupa engomando
Rua do Coqueiro?

Era sua saia
De chita vermelha?

Hoje é uma pantera
Guardada em perfume

No princípio
Era o verso
Alheio

Disperso
Em meio
Às vezes
E às coisas
O poeta dorme
Sem se saber

Ignora o poema
Não tem nada a dizer

O poema péssimo
Revela
Ao ser lido
Que há no leitor
Um poeta adormecido

O poema péssimo
(por péssimo) pode
Ser comovido

Inda que errado
Em sua emoção
Inda que trancado
Em sua dicção

Ele guarda um barulho
De quinta, de sala,
De vento ou de chuva
De gente que fala:
Ivo viu a uva

O poeta ao ler
O péssimo poema
Nele não se vê

Na palavra ou verso
Onde não se lê
Lê-se ao reverso
Em seu vir a ser

E assim vira ser

Já que a escrita cria
O escrevinhador
Soletra na pétala
O seu nome flor

O mundo que é fácil
De ver ou pegar
É difícil de ter!
Difícil falar
A fala que o dá

E a fala vazia
Nem é bom falar

Se a fala não cria
É melhor calar

Ou – à revelia
Do melhor falar –
Falar: que a poesia
É saber falhar

Descubro a estranheza
Do mundo
Num jardim destroçado
Da Rua dos Prazeres
Esquina de Afogados

Num relance, o banal,
Revela-se denso e
Os galhos as folhas
São assombro e silêncio

O que era segurança
Se esquiva – perdido
Falo: planta jasmim

Mas a voz não alcança
O fundo do abismo

A boca não fala
O ser
(que está fora de toda linguagem):
Só o ser diz o ser

A folha diz folha
Sem nada dizer

O poema não diz
O que a coisa é
Mas diz outra coisa
Que a coisa quer ser

Pois nada se basta
Contente de si

O poeta empresta
Às coisas
Sua voz – dialeto –

E o mundo
No poema
Sonha-se
Completo
(Ferreira Gullar)

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