domingo, 17 de outubro de 2010

CUBA: RESISTÊNCIA SOCIALISTA

Entre todas as resistências populares anti-sistémicas que sublevam atualmente a América Latina — e são inúmeras —, uma delas conseguiu fazer malograr a estratégia de dominação dos Estados Unidos: a do povo cubano. Única experiência revolucionária do Continente até ao momento vitoriosa, a mais antiga e radical das lutas latino-americanas coloca à hegemonia capitalista um problema insolúvel, que faz dela um perigo inaceitável pelo exemplo que dá: Cuba é a prova de que é possível na América Latina uma resistência socialista , anti-imperialista e anti-capitalista.
É esta presença do socialismo — revelando simultaneamente uma perda de controlo, por parte das forças dominantes do capital, de uma das peças da sua zona de influência máxima e o local preservado de uma alternativa para esta região devastada pelo neoliberalismo — que motiva os esforços de isolamento dirigidos contra ela (“elemento do eixo do Mal”) pela facção mais reaccionária do poder estabelecido nos Estados Unidos. Apesar de mais de 40 anos de guerra não declarada contra a Ilha, concretizada por inúmeras agressões directas ou terroristas, pelo mais longo bloqueio da História, pela ocupação militar de uma parte do território (base de Guantánamo) e por uma propaganda mediática, o governo dos Estados Unidos não conseguiu minar a base popular da Revolução, nem a dos apoios exteriores a favor da Cuba socialista , pois o facto é que esta goza de um prestígio imenso nos meios populares e progressistas. Muitos são os que, especialmente a Sul, admiram, aderem e desejam partilhar os seus valores e o seu projecto social. Há uma razão para isto, que é simples: os motivos que impulsionaram outrora a Revolução em Cuba — os estragos sociais causados pelo capitalismo e a violência imperialista dos Estados Unidos — não desapareceram nem da América Latina nem dos outros países do Sul; apesar de dificuldades reais de todos os géneros, os princípios das origens — justiça social e independência nacional — continuam a animá-la; para muitos, os objectivos almejados — um poder íntegro ao serviço da grande maioria do povo e uma sociedade socialista — continuam a constituir uma necessidade de futuro.


Mas a reação norte-americana não é a única, longe disso, a obstinar-se contra a Ilha. Em França, “à esquerda” , há quem esteja persuadido da justeza da sua luta ao condenar Cuba, sem julgar necessário saber mais sobre o que se passa realmente na Ilha do que aquilo que é dito pelos órgãos de comunicação — unilateralmente hostis e posicionados nos seus chavões mediáticos (prostituição, corrupção, mercado negro, fachadas em ruínas… e “ditadura castrista” ) — ou pelo turismo intelectual. Os próprios comunistas, jurando que não voltariam a cair noutra, desorientados por uma série de derrotas e erros, preferem alinhar-se: dado que parece não passar de um resíduo anacrónico do sovietismo, Cuba deve cair. Este artigo tem por objectivo lutar contra este pensamento único anti-cubano, que constitui uma das múltiplas faces ideológicas da mundialização neoliberal–guerreira actual.

A URSS e Cuba: “pacto neocolonial” ou detonador de desenvolvimento?
Num artigo recente de Alternatives économiques, O. Appaix descreve o socialismo cubano anterior a 1990 como “um pacto neo-colonial renovado” . Utensílio do pacote de ideias feitas sobre Cuba — e preço a pagar para publicar hoje nos meios de grande tiragem —, a tese diz que as relações da Ilha com a URSS são a continuação, sob aparência de comunismo, da posição de país explorado característica da sua história pré-revolucionária. Um dos episódios seria a “marginalização” do Che — qualificado, no entanto, de “chefe de fila dos burocratas” e promotor de um plano que conduziu a uma “penúria alimentar terrível” . Como prelúdio, o autor recordava que, graças às quotas açucareiras, os Estados Unidos “asseguravam ao país uma receita relativamente estável”. Permita-me o leitor fazer aqui uma breve incursão pela História, destinada a mostrar de que forma o desconhecimento dos factos pode levar a este tipo de confusões.
A dependência económica de Cuba em relação aos Estados Unidos consolidou-se, sob a forma política da colonização espanhola, antes da sua intervenção militar de 1898. A independência dos Estados Unidos cortou-os dos mercados ingleses e canalizou-os para a Ilha, que passou a ser o principal ponto de escoamento externo dos seus produtos. Compravam açúcar a Cuba — 1° produtor mundial desde o início do século XIX — e forneciam-lhe em troca os meios de o produzir: escravos, máquinas... A quota-parte das exportações cubanas para os Estados Unidos era de 65 % em 1850, 85 % em 1875 e 90 % em 1895, em comparação com 5 % para a Espanha nas mesmas datas.


Em 1895, Cuba era ainda o 2° mercado externo dos Estados Unidos. Os laços criados entre produtores de açúcar cubanos e negociantes, industriais, armadores, banqueiros e negreiros estadunidenses imbricavam a estrutura produtiva insular na estrutura do Norte e, desde muito cedo, o centro de que a periferia cubana dependia deixou de ser a velha metrópole imperial e passou a ser a futura hegemonia mundial. De 1898 a 1958, esta dependência reforçou-se através do assalto da corporate finance ; Morgan e Rockefeller apoderaram-se de tudo o que aí gerava lucro: centros açucareiros, minas, energia, tabaco… Em 1920 já dominavam a Banca. Cuba não era nada, dir-se-á? Nada menos do que o 3º país destinatário dos capitais estadunidenses no mundo em 1925. O seu crescimento extravertido guiou-se por uma lógica de finança : realizar lucros imediatos, repatriados para os Estados Unidos — o contrário do desenvolvimento. A "racionalidade" desta estratégia de desemprego e de terras não utilizadas, sem industrialização nem diversificação agrícola, era tal que, antes de 1959, o 1° produtor mundial de açúcar bruto estava reduzido a importar... açúcar refinado! Os Estados Unidos não eram apenas o fornecedor e cliente de Cuba, mas também o seu proprietário. O Estado acelerou a transferência de excedentes para o Norte e a pilhagem do tesouro pela dívida pública. E quando F. Roosevelt renunciou ao intervencionismo revogando a Lei Platt e instaurou o sistema de quotas (1934), Cuba ganhou em autonomia? Na realidade a sua dependência aumentou ainda mais: as quotas confinaram a Ilha à exportação de açúcar bruto (entretanto reduzida a metade), arruinaram as raras refinarias que possuía e obrigaram-na a escoar os excedentes no mercado livre, o que fez baixar as cotações e permitiu a Washington rever em baixa os seus preços garantidos. Os EUA não asseguravam uma "receita estável", mas pelo contrário encurralavam Cuba no subdesenvolvimento, comprando a submissão das suas classes dominantes e da sua ditadura pró-Estados Unidos .


Surgida do húmus comum latino-americano, a Revolução apoiou-se em séculos de resistência de um povo multi-racial: das revoltas de escravos aos exércitos mambises (negros e mestiços) das guerras de independência, das ocupações de latifundios pelos camponeses sem terra às lutas de resistência e sindicais progressistas… As cadeias que prendiam a Ilha aos Estados Unidos, a violência da reacção destes últimos a qualquer progresso (reforma agrária…) e a desproporção da relação de forças explicam o facto de a Revolução só ter triunfado graças à conjugação da determinação do povo cubano e do apoio que lhe foi dado pela União Soviética. A ajuda desta não deve no entanto fazer esquecer que o socialismo não foi importado nem imposto em Cuba, tendo sido o culminar de um processo interno de radicalização da luta de classes, no termo do qual as forças revolucionárias convergiram quanto à necessidade de uma emancipação nacional (anti-imperialista) e social (anti-capitalista). Esta Revolução não conheceu o terror, as "purgas" e os "goulags" — para grande pena dos peritos da " barbárie moderna", cujos ataques, neste prisma, não encontraram fundamento. No final de um debate de fundo entre revolucionários (Rodriguez, Guevara…), foi decidido o regresso ao açúcar, do qual dependiam após mais de um século de dominação estadunidense toda a economia e a frente operária-camponesa como base da Revolução. Esta decisão foi adoptada sob pressões internas e externas extremamente fortes — que causaram as dificuldades iniciais, mais do que um Che " burocrata" , e sem " fome terrível" — : mobilização do povo em armas para defender a Revolução, exigência de obter divisas face ao bloqueio estadunidense, inexperiência da planificação e penúria de quadros, complexidade da reforma agrária… Foi possível censurar (mais frequentemente após ter acontecido o inimaginável: o fim da URSS) o excesso da estratégia açucareira ou determinadas insuficiências da sua planificação, mas é difícil negar que, durante 30 anos, o motor açucareiro do país permitiu-lhe, apesar dos fracos recursos em 1959 (nem indústria, nem petróleo…), fazer trocas comerciais vantajosas com o bloco soviético e impulsionar um desenvolvimento que, pela primeira vez na História, respondia às necessidades do seu povo.


Significa isto que este desenvolvimento era "auto-centrado" ou que a Ilha era, em 1989, um país "desenvolvido" ? Evidentemente que não. Devemos por esse facto ocultar a diferença de natureza existente entre a Cuba de 1959 e a de 1989? Embora a ruptura com o neocolonialismo deva ser situada no âmbito das estruturas rigidificadas que este lhe legava — e em primeiro lugar a da especialização açucareira — e das pressões que o sistema mundial capitalista continuou a exercer — bloqueio dos Estados Unidos —, as transformações operadas pela Revolução foram radicais . A cooperação com o COMECOM "estabilizou" o comércio, mas inverteu sobretudo o sentido da transferência de excedentes. A propriedade nacional dos meios de produção comandou a acumulação e controlou a importação e a repartição. Foi deste modo que se tornou possível incentivar o desenvolvimento industrial , parcialmente articulado, é um facto — mas adaptado às condições de um pequeno país —, em torno do complexo mineiro-metalúrgico-mecânico ou do agro-alimentar. Foram impulsionadas novas produções até então inexistentes: fabrico de maquinaria agrícola (ceifeiras), pesca, produtos farmacêuticos… A edificação de serviços sociais, uma forte redistribuição do rendimento e a instauração da libreta alimentar reduziram as desigualdades e garantiram progresso, homogeneizando a sociedade, liberta dos males do passado (iletrismo, desemprego, miséria, segregação, corrupção, mafia…). Os cientistas cubanos não só atingiram muitas vezes o melhor nível mundial (farmácia, agronomia…), como servem o seu povo — e por vezes mesmo outros para além do seu. Por outras palavras, no final dos anos 80, as condições de vida eram bastante boas em Cuba — decerto melhores do que noutros países da América Latina-Caraíbas. Embora se continue a associar socialismo e “penúria alimentar”, os dados fornecidos pela FAO mostram que em 1990, mesmo para a alimentação, Cuba vinha à cabeça da lista do continente relativamente à disponibilidade quotidiana em calorias por pessoa, enquanto que os dados do PNUD a classificam no 4° lugar em 30 no mesmo ano. Um estudo estatístico da situação social a partir dos indicadores das organizações internacionais revela que Cuba conservava o seu avanço em 1994-95, no auge da crise do pós-URSS, em quase todos os factores de desenvolvimento humano : saúde (segurança social, médicos, enfermeiros, camas de hospital, esperança de vida…), educação (taxas de escolaridade líquidas, racios alunos/professores, êxito escolar e testes internacionais, bolsas, formação de adultos…), igualdade (coeficientes de Gini, mobilidade social…), protecção da criança (cuidados pré-natais, vacinas, creches, ausência de trabalho infantil…), condição feminina (melhor “ índice de participação económica, política e profissional ”, maternidade, único país a reconhecer o direito ao aborto...), trabalho (índices muito baixos de desemprego, reformas...), segurança (mortalidade por homicídio quase nula, rara delinquência...), diferença cidade-campo (infra-estruturas rurais, crescimento limitado da demografia urbana, ausência de “bairros de lata”...), ambiente (reflorestação, projectos de agricultura biológica...), cultura (bibliotecas, quotidianos, filmes, desporto...). A OMS indica que, apesar da crise dos anos 90, a taxa de mortalidade por carências nutricionais manteve-se excepcionalmente baixa em Cuba — 7 vezes menos do que na Argentina, 16 vezes menos do que no México... Relativamente a 1996, a FAO publica indicadores de “subalimentação” em Cuba 2 vezes inferiores aos da Costa Rica, 3 vezes inferiores aos do Chile... Não se morre de fome na Ilha, mesmo depois de 1990. Será pelo facto de Cuba se ter mantido socialista?


Após o “fracasso” soviético:
desmoronamento ou recuperação de Cuba?
O desmoronamento do bloco soviético mergulhou a economia cubana numa crise gravíssima. O desmantelamento do COMECOM, no interior do qual estavam integradas as trocas comerciais de Cuba, provocou a queda das exportações e das importações. Sucedeu-se uma forte baixa do investimento e do consumo, e por conseguinte do PIB (-35% entre 1989 e 1994, ponto baixo da crise) e da produtividade. Depois da relativa abundância da década de 80, no início dos anos 90 começou a faltar tudo materialmente na Ilha.
As fábricas ficaram sem combustível, matérias-primas, peças sobressalentes... O défice orçamental aprofundou-se sob o efeito da deterioração das contas das empresas públicas e de uma vontade política de manter tanto quanto possível os níveis salariais, o emprego e as despesas sociais, o que resultou na dilatação da liquidez, traduzindo uma forte inflação e o enfraquecimento do peso. O país entrou em “período especial em tempo de paz”. Apesar do endurecimento do bloqueio e das condições de vida se terem tornado muito difíceis (consumo, transportes...), os Cubanos suportaram o choque. Esta crise foi tanto mais visível quanto, contrariamente aos planos de ajustamento estrutural capitalistas que concentram os seus efeitos nos grupos não representados politicamente e economicamente pobres, foi toda a sociedade cubana que sofreu o impacto. Embora seja evidente que o seu igualitarismo e a sua homogeneidade não ficaram intactas — as desigualdades aumentam pela primeira vez desde 1959 —, a estratégia de recuperação implementada em 1993-94 pela Revolução atingiu parcialmente os seus objectivos: a partir de 1995, a economia restabeleceu-se (em 2000 a produção global subiu para 85% do nível de 1990); a sociedade cubana, apesar de muito chocada pelo ressurgimento de desigualdades, não se desmantelou; os pilares do sistema social cubano, abalados, mantêm-se de pé: a educação e a saúde continuam a ser gratuitas, o emprego e a reforma amplamente garantidos, a alimentação de base e os serviços sociais (electricidade, água, telefone, transportes, habitação...) a preços módicos, a investigação e o internacionalismo dinâmicos... Embora tenha procedido a reformas profundas, o Estado cubano não efectuou nenhuma privatização do aparelho produtivo nacional, nem introduziu um real mercado financeiro.... Será o impossível possível? Não, mas aquilo que Cuba demonstra é que um povo pode optar por resistir à ordem mundial imposta pela hegemonia dos Estados Unidos. Pois a orientação tomada, pela firmeza dos seus objectivos — salvar a todo o custo a sociedade socialista construída pela Revolução — e as consequências assumidas — a penúria devida ao endurecimento do bloqueio — foi uma decisão política colectiva : as diferentes opções que se desenhavam (código do trabalho, sistema educativo, segurança social, aposentação...) foram objecto, em plena crise, de deliberações e de análises no seio das organizações de massa e das unidades de produção.


As medidas fundamentais consistiram em dotar a economia de novos motores de crescimento, destinados a substituir o sector açucareiro. As entradas de capitais associadas ao turismo, aos investimentos directos estrangeiros (IDE) e às transferências de devisas do exterior (remesas) permitiram à economia, parcial e temporariamente dolarizada , retomar um crescimento sustentado e restabelecer o valor da moeda nacional. O número de turistas duplicou entre 1993 e 1996 e aproximou-se dos 1,8 milhões em 2001. Estão registadas mais de 400 sociedades mistas ou ligadas ao capital estrangeiro na Ilha, onde o total dos IDE se eleva a 4,5 mil milhões de dólares. Os rendimentos privados ultrapassavam os mil milhões de dólares em 2000. O peso, depreciado contra o dólar em 150/1 em 1994, revalorizou-se — fenómeno raro na América Latina — tendo-se estabilizado em 21/1 desde 1996 até ao final de 2001 — antes de aumentar para 26/1 após o 11 de Setembro e a redução do turismo a nível mundial. A taxa de crescimento do PIB voltou a ficar significativamente positiva: 2,5% em 1995, 7,8% em 1996, 2,5% em 1997, 1,2% em 1998, 6,2% em 1999, 5,6% em 2000, 3% em 2001 e 2002, e provavelmente 5% em 2003. Tomamos como referência os dados da CEPAL, elaborados em colaboração com a Oficina Nacional de Estadísticas de Cuba e não os da CIA, como o fazem de forma imprudente F. Vergara e J. Habel em L'État du Monde — questão de confiança. E também porque o PIB per capita em PPC, “segundo a CIA” — que eles têm em consideração — e que situa a Ilha abaixo do Sudão, da Mongólia ou da Papuásia Nova-Guiné (!), pouco acima do nível do Bangladesh, da Mauritânia ou do Haiti (!!), poderia desastrosamente sugerir (não é decerto a intenção destes excelsos conhecedores, de longa data, do país) que os Cubanos seriam hoje em média 2,5 vezes mais afortunados se não tivessem feito a Revolução (Filipinas) e quase 6 vezes mais ricos se tivessem continuado neo-colonizados pelos Estados Unidos (Porto Rico)… De qualquer forma, o forte aumento da produção petrolífera insular desde meados dos anos 90 contribuiu certamente para favorecer a retoma económica.


Embora o processo de reforma e recuperação tenha sido até ao momento relativamente controlado pelo governo, nem todos os seus efeitos foram positivos, tal como já o dissemos, e as ameaças que pesam sobre a sociedade cubana são tais que este recorda de forma recorrente a sua vontade de pôr termo à dolarização assim que as condições lho permitam. Além disso, o turismo introduziu um desvio no acesso da população ao dólar, mesmo se existem amortecedores, informais (solidariedade espontânea) ou formais (empregados de hotéis ou motoristas de táxis que dão uma parte das gorjetas a fundos colectivos redistribuídos aos que não têm contacto com a clientela). Do ponto de vista macro-económico, este sector pode acabar por absorver mais recursos do que aqueles que gera, como acontece em inúmeros países do Sul. Os IDE que vêm a Cuba em busca de lucro acarretam fluxos autónomos de saídas de capitais. Correm o perigo de destabilizar as relações de trabalho, e é necessária uma atenção particular por parte do Estado e dos sindicatos para que os direitos sociais fiquem garantidos nas sociedades mistas. As remesas cavam as desigualdades de forma preocupante — 12% das contas bancárias em dólares concentram 80% dos depósitos em 2000 — e podem comprometer os valores da Revolução. Todavia, não é sustentável declarar que se reconstituiu em Cuba uma classe burguesa: o Estado continua a bloquear com firmeza as possibilidades de acumulação nacional de capital privado — e os seus altos dirigentes não enriqueceram nem são corruptíveis (os empresários estrangeiros sabem-no, na medida em que não podem proceder em Cuba como o fazem noutros locais). É um facto que o Estado autorizou o trabalho por conta própria, que permite o despontar de múltiplas actividades (comerciantes, artesãos, prestadores de serviços...), mas proíbe a contratação de assalariados exteriores à família detentora de licenças. Decidiu abrir lojas em que as compras se fazem em dólares (tiendas de recuperación de divisas) e mercados agrícolas (agro-pecuários) nos quais camponeses privados, recentes beneficiários de medidas de distribuição de terras, cooperativas (nomeadamente UBPC ) e propriedades agrícolas estatais vendem uma parte dos seus produtos, mas continua a fornecer, melhor ou pior, uma porção não negligenciável do consumo de base a preços reduzidos ( libreta ) e mobiliza regularmente o exército para aprovisionar os mercados de Estado — o que retira toda a pertinência à ideia de reformas piores em Cuba do que as PA impostas pelo FMI (o que B. Théret defende). O Estado encoraja joint ventures e zonas francas, mas protege nelas os direitos do trabalho e o papel dos sindicatos, e limita ao máximo as diferenças de rendimento: a firma estrangeira paga salários em dólares a uma empresa-ponte que, por sua vez, paga aos trabalhadores remunerações em pesos, sendo que a diferença financia as despesas públicas. A planificação perdeu terreno, mas as transferências monetárias, utilizando habilmente a dupla taxa de câmbio (uma oficial sobreavaliada e a outra semi-oficial sem dúvida subavaliada), asseguraram a continuidade dos serviços sociais (educação, saúde, reforma, alimentação, habitação, infra-estruturas...) por perequação inter-sectorial das entidades emergentes para as entidades tradicionais — simultaneamente implicadas na racionalização da sua gestão ( perfeccionamiento empresarial). Embora tenha de admitir provisoriamente o avanço dos mecanismos de mercado, o Estado parece ter conseguido submetê-los aos interesses do povo. Não é possível falar actualmente de transição para o capitalismo em Cuba.


Estas mutações levaram a uma reestruturação do sector açucareiro, acelerada em 2002 pelo encerramento de centrales e pela reconversão dos seus efectivos, deixando pressagiar uma “saída do açúcar” após dois séculos de especialização — o que é, em si, uma coisa positiva no contexto actual. Com excepção do tabaco, cuja procura é forte, é na agricultura que os resultados foram os mais decepcionantes. Há quem proponha como solução para as dificuldades a privatização da terra, a fim de estimular o campesinato. Não deu esta solução bons resultados no Vietname, que se tornou auto-suficiente relativamente a vários produtos e grande exportador de arroz? Esta opção não poderá no entanto fazer esquecer, por um lado, que a colectivização tinha acarretado fortes subidas de produção e, por outro lado, que uma eventual transposição desta opção se depararia com problemas ligados às especificidades do pequeno campesinato cubano. Este não tem nem a mesma implantação nem a mesma experiência que o do Vietname, por razões históricas. A história de Cuba é a do desaparecimento das culturas e saberes ameríndios (século XVI), das grandes propriedades de criação de gado para o couro (XVII), das plantações esclavagistas de canas (XVIII-XIX), das açucareiras nas quais trabalhava um proletariado operário assalariado (1886-1958)... e por conseguinte a de um pequeno campesinato rejeitado para as margens dos latifúndios e obrigado a aprovisionar a mão-de-obra do açúcar. Apesar da reforma agrária e da manutenção do sector privado (tabaco...), quatro décadas de Revolução não foram suficientes para constituir um tecido camponês, secular noutros locais. Em resumo, uma privatização forte da terra conduziria muito provavelmente ao ressurgimento de uma estrutura de propriedade rural desigualitária e polarizada, como no passado. A venda “livre” de produtos agrícolas permitiu a muitos camponeses enriquecer, mas por agora essa liquidez não incrementa uma dinâmica de capital controlando de forma privada uma criação de valor pelo emprego de trabalho assalariado. Pode-se considerar que estes “bloqueamentos” derivam de um autoritarismo incapaz de extrair lições do êxito asiático; pela nossa parte, pensamos que é necessário evitar a universalização de “receitas”, tolerar trajectórias diferentes em função do terreno e da História, e ter consciência de que o latifúndio é um dos piores inimigos da América Latina.


O sucesso da investigação médica:
“ montra do regime ” ou realidade social?
Já vai longe o tempo em que o matemático L. Schwartz declarava: “O carácter universal e democrático da educação é inestimável neste país, onde a Revolução é um poderoso estimulante do desenvolvimento. Dentro de 5 ou 15 anos, Cuba disporá de cientistas de classe internacional precisamente porque estes progressos são apoiados pela Revolução”. No momento mais duro da crise (1994-95), Cuba continuava a investir na Ciência e ocupava o 1° lugar na América Latina no que se refere ao orçamento público para a investigação no PIB, à frente da Costa Rica, e o dos investigadores na população activa, muito à frente da Argentina e do Chile. O número de cientistas a tempo inteiro elevava-se a 29.000 em Cuba, mais do que no México (19.500), pouco menos do que no Brasil (32.000) — para 11, 92 e 163 milhões de habitantes, respectivamente. Os alicerces deste sucesso foram colocados pelas medidas revolucionárias, que fizeram de Cuba, a partir dos anos 60, o país mais igualitário do Continente americano (coeficiente de Gini de 0,55 em 1955, 0,35 em 1962, 0,22 em 1986), e pela campanha de alfabetização que, num ano (1961), reduziu a taxa de iletrismo de 35% para 3%, tendo depois sido consolidadas por um sistema educativo universal e gratuito, igualitário e despojado de discriminações sexistas e raciais, que dotou a Ilha de investigadores de alto nível.


O voluntarismo cubano em matéria científica pode ser ilustrado pela descoberta, pela equipa do Dr. Campa do Instituto Finlay em Havana, da primeira vacina contra a Meningite B em 1985. Para demonstrar a sua eficácia, os investigadores testaram-na em si próprios antes de os peritos estrangeiros (incluindo norte-americanos) terem sido associados à verificação dos resultados. Em 1989, foi lançada em todo o país uma campanha de vacinação da população com idades situadas entre os 3 meses e os 24 anos. Desde então foram administradas milhões de doses na América Latina, nomeadamente no Brasil — para onde foram enviadas gratuitamente quando o bloqueio dos Estados Unidos impediu a assinatura atempada dos contratos. Uma quinzena de países (Coreia do Sul, Rússia...) utilizaram esta vacina aquando de fases de recrudescência da epidemia. Única eficaz até hoje no mundo, esta vacina recebeu em 1993 a medalha de ouro da International Property Organization , o que pôs fim às difamações de que foi alvo. Perante a agressividade das transnacionais farmacêuticas, foi patenteada ( Va-MenGOC-BC® ), e previu-se a sua comercialização por intermédio de uma sociedade estrangeira. Durante dois anos, as negociações com a firma anglo-americana Smith-Kline-Beecham foram entravadas pelo Departamento do Tesouro, encarregado do controlo da aplicação do bloqueio. Entretanto, mais de 500 pessoas morriam nos Estados Unidos de meningite por meningococos do Grupo B. Foram necessárias a intervenção de cientistas do mundo inteiro e a mobilização de deputados e de cidadãos dos Estados Unidos para autorizar a importação da vacina “ por motivos sanitários favoráveis aos Estados Unidos ”. Pela primeira vez, uma vacina descoberta e produzida num país do Sul era administrada num país do Norte. Será um caso isolado, utilizado como “ montra do regime ”? Não é C. Campa membro do Comité Central do Partido Comunista de Cuba? Os laboratórios cubanos comercializam uma gama de vacinas concebidas na Ilha (algumas compradas pela OMS) contra a hepatite B, a leptospirose, o tifo, o hemophilus influenza..., assim como combinados (difteria-tétano-coqueluche...). Os resultados dos testes da nova vacina contra a cólera — propagada em determinadas zonas da América Latina — são comparáveis aos das fabricadas nos Estados Unidos. Registaram-se igualmente progressos em matéria de interferon, de factor de crescimento epidémico, de genética médica, de tratamento do colesterol (PPG), de diagnósticos por sistemas ultramicroanalíticos, de anticorpos monoclonais, de medicina tropical, de tratamento do vitiligo, de hemologia, de tratamento de doenças mentais — tratamentos que o Presidente da Associação Mundial de Psiquiatria elogiou recentemente... Os centros de imunologia molecular cubanos aperfeiçoaram vários tratamentos contra o cancro. Está inclusivamente a ser objecto de análise clínica avançada uma pré-vacina contra o SIDA. Os nossos meios de comunicação preferiram difundir o boato de doentes presos em “ sidatórios ” (termo utilizado por Le Pen e retomado pelo seu efeito repulsivo), enquanto que Cuba ministra aos portadores do vírus HIV os cuidados terapêuticos disponíveis mais avançados, totalmente gratuitos e em meio aberto a familiares e amigos. Por que motivo não se pronunciaram sobre o facto de médicos cubanos se terem oferecido como voluntários para serem inoculados com o vírus do SIDA e testar em si próprios os tratamentos que descobriram?


O que levará um jovem cirurgião de Havana a operar os doentes por 480 pesos por mês, quando recebe ofertas de emprego de clínicas privadas dos Estados Unidos? O que liga à sua profissão um dos 60.000 médicos de família cubanos, que exerce no edifício em que habita, ele que não tem acesso ao dólar? O que fará vir uma investigadora para Cuba após uma conferência dada no estrangeiro, sabendo a diferença de riqueza que separa o seu país do Norte? Em 1959, metade dos 6.000 médicos, quase todos privados, urbanos, desafogados, partiram da Ilha. Se alguns se deixam hoje em dia tentar, a grande maioria dos cérebros fica em Cuba. Por “impossibilidade de sair”, diz-se? São numerosos os investigadores e médicos cubanos que viajam no mundo inteiro (seria melhor denunciar a política dos Estados Unidos, perfeitamente criminosa, que recusa a emissão de vistos legais mas concede a nacionalidade a todo o emigrante, exclusivamente cubano, que chegue ilegalmente ao seu território, incitando à travessia perigosa do estreito da Florida). Por que ficam eles? Talvez porque saibam que o sistema público que construíram — e que os Estados Unidos se obstinam em destruir — põe à sua disposição, apesar da crise, os meios para exercerem os seus talentos. Porque um dos sentidos da sua vida é afirmar cada dia a sua decisão de fazer com que o povo tenha uma vida melhor. Porque são produtos da Revolução, que fez dos filhos e filhas de operários e camponeses que eles eram os cientistas que são, animados por um ideal alheio ao lucro. Face às pilhagens materiais, destruições ambientais e desperdícios humanos do capitalismo planetário, aquelas mulheres e aqueles homens demonstram que uma sociedade pode existir colocando o “ bem-estar das crianças no primeiro lugar da sua lista de prioridades” , para utilizar as palavras do Director Regional da UNICEF para a América Latina. “O homem no centro”, dizia o Che...

Um aspecto das relações cubano-estadunidenses sem dúvida desconhecido do público francês é o das agressões de carácter biológico organizadas a partir dos Estados Unidos e destinadas a infectar culturas, rebanhos e população de Cuba. Um exemplo flagrante de utilização deste tipo de meios foi a epidemia de dengue hemorrágico que afectou a Ilha em 1981. No termo de um escândalo que abalou a opinião pública dos Estados Unidos, provou-se que este tipo de dengue, desconhecido na época, tinha sido fabricado em laboratório com vista à sua propagação intencional em Cuba. Após vacinação dos soldados de Guantánamo, os Estados Unidos proibiram às suas firmas (e a vários países) o fornecimento de pesticidas anti-mosquitos e aviões de disseminação destinados a travar a transmissão da doença. A epidemia matou 158 pessoas em Cuba — essencialmente crianças. Foram detectadas outras operações deste género, como é o caso da tristeza (insecto) encontrada no aeroporto nas bagagens de um cidadão norte-americano em 1992. Pode-se evidentemente pensar que estes casos foram totalmente arquitectados pelas autoridades cubanas. Mas isso parece difícil quando as “culturas” são detectadas pela primeira vez em Cuba (bactéria Shiguella 1 da desinteria [1982]), na América (conjuntivite hemorrágica [1981], síndroma acaro steneotarsonemus [1997]) e mesmo no mundo (dengue Nova Guiné 1924 serotipo 2 ), e mais ainda quando membros de organizações anti-cubanas reconhecem publicamente nos Estados Unidos terem participado em tais acções (vírus modificado da febre suína [1979]).

O bloqueio: “pretexto” ou guerra não declarada?
O bloqueio é por vezes apresentado como um fenómeno secundário ou mesmo negligenciável. Para alguns, seria um “pretexto” para dissimular o “pesadelo do regime castrista” . Que gravidade teria para a Ilha se é tão fácil de contornar? Muitos franceses tomaram agora consciência do que as autoridades estadunidenses são capazes para destruir quem lhes resiste (campanha anti-francesa de calúnias, boicote de produtos, controlo dos meios de comunicação pela finança ou pelo exército, manipulação dos factos e desprezo pela opinião pública, chantagem sobre Estados soberanos do Conselho de Segurança...), e têm a noção da força e do orgulho que um povo sente ao assumir essa luta, assim como a simpatia e o respeito que lhes granjeia por parte dos outros povos. Devemos lembrar-nos que Cuba infligiu aos Estados Unidos, aquando da invasão da Playa Girón (Abril de 1961), a sua única derrota militar na América, e avaliar bem o bloqueio: trata-se de uma guerra não declarada de Washington contra a Ilha. Embora o bloqueio total tenha sido decretado em Fevereiro de 1962, Eisenhower tinha já proibido o comércio entre os dois países; por sua vez, Kennedy restringiu a liberdade de circulação dos cidadãos norte-americanos que desejassem viajar para Cuba. As operações efectuadas por um cidadão dos Estados Unidos com a Ilha caíam sob a alçada do Trading with the Ennemy Act. Desde 1964, firmas estrangeiras que vendiam medicamentos ou material médico a Cuba sofreram pressões no sentido de denunciarem os contratos: Ayerst Canada (medicamentos), Medix Argentina (aparelhos de diálise), Toshiba (equipamentos), Siemens (detectores cardio-vasculares), Thompson (peças sobresselentes), LKB Sweden (materiais de laboratório)… Os Estados Unidos opõem-se à entrada de Cuba nas organizações financeiras internacionais. A Lei Torricelli, de Outubro de 1992, tinha por objectivo travar o ímpeto dos motores da economia, golpeando as entradas de capitais e de mercadorias mediante a cessação das transferências de mais de 100 dólares por mês por parte dos exilados, a proibição durante 6 meses, aos barcos que tivessem feito escala em Cuba, de atracarem nos Estados Unidos e sanções contra as firmas que negociassem com a Ilha abrangidas pela jurisdição de Estados terceiros. A sua vertente política pretendia virar os espíritos contra a Revolução pelo “ intercâmbio de informações ”. Este dispositivo foi criticado inclusivamente nos meios de negócios e nas fileiras conservadoras dos Estados Unidos por entravar a circulação de capitais.

Estas reações, muitas vezes vivas , eram menores comparadas com as que iria suscitar a Lei Helms-Burton. Esta lei, que reúne os 9 projectos redigidos pelos deputados de extrema-direita (Florida e Nova Jersey), aprovada em Março de 1996, pretende reforçar as sanções “ internacionais contra o governo de Castro ”. O seu Título I generaliza a proibição de importar bens cubanos, exigindo nomeadamente dos exportadores que provem que nenhum dos seus produtos contém açúcar cubano, como já acontecia com o níquel. Esta lei condiciona a autorização das transferências de devisas para a Ilha à criação de um sector privado e do salariato. Mais audacioso ainda, o Título II estabelece as modalidades da transição para um poder “ pós-castrista” — estando excluída a possibilidade de Fidel ou Raúl Castro se apresentarem às eleições (secção 205, parágrafo 7) —, bem como a natureza das relações a manter com os Estados Unidos (adesão à NAFTA...). O Título III concede aos tribunais dos Estados Unidos o direito de julgar acções por prejuízos e danos introduzidas por uma pessoa singular ou colectiva de nacionalidade norte-americana que se considere lesada pela perda de propriedades nacionalizadas pela Revolução e que reclame uma indemnização aos utilizadores ou beneficiários desses bens. A pedido dos antigos proprietários, o cidadão de um país terceiro (e respectiva família) que tenha realizado transacções com esses utilizadores ou beneficiários pode ser objecto de um processo judicial nos Estados Unidos. As sanções incorridas estão expostas no Título IV, que legaliza a recusa de vistos de entrada a esses indivíduos e seus familiares pelo Departamento de Estado. O tumulto provocado por esta lei, em especial na Europa e entre os democratas nos Estados Unidos, não impediu o Presidente Clinton de renunciar a opor-lhe o seu veto. As críticas concentraram-se na extraterritorialidade destas normas, que pretendem unilateralmente mundializar a aplicação do bloqueio à comunidade internacional. A Lei Helms-Burton viola o direito internacional e o princípio de soberania nacional, ao imiscuir-se nas opções políticas de um Estado vizinho. As reticências expressas perante as pressões exercidas para a economia de mercado demonstram que não há consenso a este respeito à escala mundial, tal como sobre a concepção do liberalismo como condição da democratização.




O bloqueio imposto a Cuba pelos Estados Unidos é condenado por uma maioria cada vez mais ampla de países membros da Assembleia Geral das Nações Unidas. Em Novembro de 2002, pelo 11° ano consecutivo, o representante dos Estados Unidos declarou que o seu governo não cumpriria as injunções da ONU (Resolução 56/9).

Votos da Assembleia Geral da ONU sobre “a necessidade de levantar o bloqueio”

Por Contra Países contra o levantamento do bloqueio

1992 59 X 2 EUA, Israel
1993 88 X 4 EUA, Israel, Albânia, Paraguai
1994 101 X 2 EUA, Israel
1995 117 X 3 EUA, Israel, Uzbequistão
1996 138 X 3 EUA, Israel, Uzbequistão
1997 143 X 3 EUA, Israel, Uzbequistão
1998 157 X 2 EUA, Israel
1999 155 X 2 EUA, Israel
2000 167 X 3 EUA, Israel, Ilhas Marshall
2001 167 X 3 EUA, Israel, Ilhas Marshall
2002 173 X 3 EUA, Israel, Ilhas Marshall

Segundo Cuba, as perdas para a economia ultrapassam 70 mil milhões de dólares. Embora todos os sectores sejam afectados (saúde, educação, consumo...), o bloqueio trava sobretudo os motores da recuperação e em primeiro lugar o turismo — previsões de fluxo de turistas norte-americanos em caso de autorização de viagem a Cuba: 1 milhão no 1° ano, 5 milhões 5 anos depois. A direcção da filial britânica do grupo Hilton teve de cessar há pouco tempo as negociações para a gestão de hotéis, pois os seus advogados previam que os Estados Unidos considerariam o contrato uma violação da Lei Helms-Burton. A aquisição, por um grupo norte-americano, de sociedades europeias de cruzeiros que atracavam em Havana levou à anulação dos projectos com Cuba em 2002. Em violação da Convenção de Chicago sobre a Aviação Civil, os obstáculos que os Estados Unidos colocam à compra ou aluguer de aviões, ao aprovisionamento em querosene e ao acesso às tecnologias (localização por rádio, reservas através da Internet...) teriam acarretado perdas de 153 milhões de dólares em 2002. O impacto sobre os IDE é igualmente negativo. Os institutos de promoção dos IDE em Cuba receberam até à data cerca de 530 projectos de cooperação de firmas estadunidenses sem que nenhum tenha podido realizar-se. Só para o sector das biotecnologias, o montante não ganho está avaliado em 200 milhões de dólares. Os domínios em que a propriedade estadunidense era dominante antes de 1959 estão hoje muito afectados pelo endurecimento do bloqueio, tal como o sector açucareiro, cuja recuperação é entravada pela proibição de acesso à primeira Bolsa mundial das matérias-primas (Nova Iorque): a perda elevou-se a 195 milhões de dólares em 2001. Determinados Bancos europeus decidiram reduzir os seus compromissos sob a ameaça dos Estados Unidos, que informaram que exigiriam indemnizações se os créditos fossem mantidos ( Bilbao Viscaya, ING... ). Outras firmas, pelo contrário, reafirmaram a sua vontade de prosseguir as actividades. A Sherritt (Canadá) anunciou mesmo uma diversificação (níquel, construção, petróleo, telecomunicações...), apesar dos ataques na Bolsa contra a cotação das suas acções e as recusas aos seus dirigentes de vistos de entrada nos Estados Unidos. A Domos (México), co-proprietária da nova companhia cubana de telefones Etecsa, ampliou igualmente as suas actividades — o seu presidente declarou que iria gastar os seus dólares noutro lado que não nos Estados Unidos.

A chegada ao poder de George W. Bush reforçou ainda mais o dispositivo anti-cubano, tanto mais que determinados funcionários de origem cubana nomeados no interior do seu Gabinete e do Departamento de Estado são conhecidos por serem responsáveis pela muito reaccionária Fundación Nacional Cubano-Americana e por outros grupos de extrema-direita, cuja actuação é de natureza comprovadamente terrorista, facto que foi denunciado pelas administrações democratas. As restrições à liberdade de circulação agravaram-se: em 2001, 698 cidadãos norte-americanos, contra 178 em 2000, foram condenados a sanções penais por terem viajado para Cuba sem autorização de saída do território. Toda a estratégia dos Estados Unidos repousa na procura de uma condenação da Ilha por “violação dos Direitos do Homem” , a fim de poder justificar a sua recusa de levantamento do bloqueio. Na 58ª sessão da Comissão dos Direitos do Homem em Abril de 2002, uma Resolução inspirada pelos Estados Unidos “convidou” Cuba a “ realizar progressos no domínio dos Direitos do Homem cívicos e políticos ”, acrescentando “ sem ignorar os esforços desenvolvidos para efectivar os direitos sociais da população apesar de um ambiente internacional desfavorável ”. A nítida clivagem Norte-Sul que o voto desta Resolução anti-cubana revelou só foi atenuada pela submissão dos delegados latino-americanos que, tendo engolido a vergonha, a aprovaram — com excepção de um voto contra (Venezuela) e duas abstenções (Brasil e Equador). A pressão dos Estados Unidos foi tal que conseguiu inverter um voto parlamentar (peruano) e ignorar as manifestações populares de apoio a Cuba (México, Cidade da Guatemala, Montevideo, Santiago do Chile)... O representante cubano perguntou se o modelo que lhe propunham era o de um país do Norte no qual um homem acabava de ser eleito presidente após um roubo eleitoral, ou o de um país do Sul no qual a população, exasperada pelo caos causado pelo FMI, assaltava camiões e supermercados para se alimentar...


O tema dos Direitos do Homem é demasiado grave para ser tratado com ligeireza ou tolerar aproximações e boatos. Vamos direitos ao assunto: a chamada “ violação dos Direitos do Homem em Cuba ” constitui a arma ideológica mais perniciosa utilizada pelos Estados Unidos contra a Ilha. O que seria conveniente interrogar seriam os mecanismos pelos quais o governo de um país — que se sabe ter nascido de um genocídio recente (século XIX), onde a segregação racial manteve até tarde a sequela da escravatura mais massiva do mundo, que exibe o espectáculo das suas desigualdades abissais e de uma violência social patológica, que apoiou as ditaduras mais sanguinárias da América Latina, impondo-as por vezes através da liquidação de experiências autenticamente progressistas, que mantém pela força armada a ordem da sua hegemonia sobre um sistema mundial iníquo, que não reconhece o Tribunal Penal Internacional com receio de ver alguns dos seus antigos dirigentes serem obrigados a comparecer perante a Justiça por crimes contra a Humanidade... — acusa de “ violação dos Direitos do Homem” o governo de um país onde nenhuma criança morre de fome nem trabalha, onde a escola e a saúde são gratuitas, onde as discriminações recuaram bastante mais do que no Norte, onde todos têm acesso a uma alimentação a preços módicos, onde o povo conquistou direitos sociais amplos e é efectivamente associado à construção político-económica do projecto de sociedade, onde a segurança está garantida e a violência é mínima, onde — segundo o Presidente da Associação Americana de Juristas declarou em 1994 — não há “nem desaparecidos, nem assassinatos, nem torturas” ...


Um dos elementos de resposta reside concerteza na natureza do conflito que opõe os dois países, o qual, antes de ser compreendido através do confronto Este-Oeste, deve sê-lo do ponto de vista das suas relações bilaterais, extremamente singulares como já o dissemos. São essas relações que explicam simultaneamente a persistência do conflito após o desaparecimento da URSS e o tratamento diferenciado que os Estados Unidos aplicam a Cuba em relação a outros países “comunistas”, tais como a China. Os Direitos do Homem nunca ocuparam um lugar privilegiado nas considerações que guiam a estratégia externa dos Estados Unidos, e a violação desses direitos nunca valeu (excepto por calculismo) às inúmeras ditaduras aliadas dos Estados Unidos a suspensão de relações comerciais ou da ajuda militar e económica. Aliás, nunca é evocada a violação dos Direitos do Homem em Cuba antes de 1959 , numa época em que uma real ditadura , pró-Estados Unidos, prendia, torturava e assassinava os opositores. A retórica de geometria variável dos Direitos do Homem é dirigida contra Cuba porque a sua Revolução é um “ pesadelo ”, não para os Cubanos que a fazem há mais de 40 anos, mas para o poder estabelecido norte-americano: anti-capitalista, anti-imperialista, anti-racista, Cuba defende a emancipação social, a libertação nacional e a mestiçagem igualitária — ou seja, o extremo oposto do projecto neo-liberal imposto pelos Estados Unidos. Incentivamos o leitor a consultar trabalhos sérios sobre esta questão séria , tais como os de P. Roman (aspectos políticos) ou de D. Evenson (aspectos económicos).

O intervencionismo exterior: “cinismo” ou internacionalismo?
Pretendeu-se, mesmo nesta Revista, falar do “cinismo” da “estratégia castrista” em matéria de intervencionismo exterior [10] . Recordemos alguns factos. Desde 1962, pouco antes de o exército francês se desligar do conflito argelino, a jovem Revolução cubana inaugurava a sua longa série de operações de solidariedade internacional, dando o seu apoio civil e militar à FLN. Cuba acolheu dezenas de órfãos de guerra que o primeiro-ministro, Bem Bella, reduzindo o tempo de visita a Washington, encontrou ao lado de Fidel Castro ao descer do avião em Havana, em 16 de Outubro de 1962. Cinismo?


Enquanto os Estados Unidos se atarefavam no Vietname, várias centenas de milhares de jovens cubanos de ambos os sexos ofereciam-se como voluntários para lutar ao lado dos seus camaradas vietnamitas (que só aceitaram a ajuda civil). Por cinismo? Enquanto o Ocidente fornecia mercenários a Savimbi, apoiado pelo regime racista de Pretória, os soldados sul-africanos e os seus aliados da UNITA foram definitivamente derrotados em 1988 pelas forças armadas cubanas que combatiam ao lado dos revolucionários angolanos. Foram elas que conseguiram preservar a soberania de Angola, obter a autodeterminação da Namíbia e dar ao povo da África do Sul o impulso decisivo para abater o apartheid — o que Mandela saudou oficialmente a partir de 1991. Seria por cinismo?
Cuba apoia desde 1959 todos os movimentos progressistas latino-americanos, os mesmos que os Estados Unidos tentam por todos os meios eliminar, grande parte das vezes com sucesso. De que lado está pois o cinismo? Objectar-se-á: onde estão os fundamentos morais de uma política que durante muito tempo se colou à da URSS? Uma análise atenta revela que o internacionalismo proletário cubano, embora financeira e materialmente apoiado pela União Soviética, foi conduzido de forma suficientemente autónoma em relação a este país para se demarcar muitas vezes da linha de Moscovo, que encontrou aliás assim frequentemente o sentido revolucionário dos seus compromisso externos. Cuba, apesar de implicada na Etiópia, irá ao ponto de reconhecer o direito à emancipação dos rebeldes eritrenses. Enquanto que entre nós os antigos da guerra da Indochina, da guerra da Argélia (dos Aurès) ou da 1ª guerra do Golfo se vangloriam dos seus feitos, em Cuba encontram-se os guerrilheiros da epopeia boliviana, os companheiros do general Giap ou os vencedores de Cuito Cuanavale, questão de pontos de referência colectivos.

O internacionalismo constituiu sempre e continua a constituir o princípio da política externa da Cuba revolucionária. Atingiu no passado uma amplitude por assim dizer incrível . O seu objectivo consistiu em satisfazer as necessidades vitais e as aspirações profundas do povo cubano, partilhando os avanços realizados em matéria de desenvolvimento e forjando os laços de cooperação fraterna com os povos cuja causa era também a emancipação nacional e social. Desde 1959, cerca de 80.000 trabalhadores civis exerceram a sua profissão numa centena de países e, por vezes, em condições difíceis. Apesar de orçamentos extremamente restritivos, a crise económica dos anos 90 não impediu a prossecução da ajuda a dezenas de países do Sul — essa ajuda foi mesmo aumentada para a Saúde e a Educação. No final de 1999, a Escola latino-americana de Ciências Médicas abriu as suas portas em Havana para formar jovens que não tinham meios para estudar nos países de origem. Os efectivos da Escola foram aumentados de 500 para 3.300, e em breve ascenderão muito provavelmente a 10.000. Além destes aumentos, 6.000 estudantes estrangeiros frequentam gratuitamente um curso universitário nas faculdades de medicina cubanas. Actualmente, somadas todas as disciplinas, 11.000 estudantes estrangeiros, oriundos de mais de 20 países, beneficiam de bolsas do Ensino Superior em Cuba. De que forma Cuba responde ao povo dos Estados Unidos cujo governo impõe o bloqueio? Oferecendo 500 bolsas de estudo por ano a jovens desfavorecidos e discriminados no seu país... Várias centenas de jovens estadunidenses, sobretudo afro-americanos e hispânicos, chegaram já a Cuba para fazerem os seus estudos, com todas as despesas pagas pelo Estado cubano.



Esta solidariedade é também uma batalha travada em todas as tribunas do mundo para resolver os problemas económicos e sociais que afectam os países do Sul. Nos encontros internacionais em que participam, os representantes cubanos reclamam e propõem sistematicamente soluções para a miséria e a fome, para a carência de cuidados médicos e de instrução, para a dívida e para o comércio desigual, para a deterioração do ambiente..., recordando que estes males se devem em grande medida à exploração de que o Sul é vítima por parte dos países capitalistas mais ricos. Em Setembro de 2000, na Cimeira do Milénio, Cuba declarou pôr à disposição imediata da ONU, da OMS e dos Estados africanos o pessoal necessário para um programa de luta contra a epidemia do SIDA que assola o continente africano, nomeadamente formando profissionais deste sector. Esta iniciativa conduziu à abertura de serviços especializados de medicina em África, onde trabalham cubanos ao lado de colegas africanos. Em 2002, cerca de 700 médicos cubanos voluntários ministravam cuidados de saúde — gratuitos, será necessário repetir — numa vintena de países. Ao mesmo tempo que continuam a ser tratadas em Cuba crianças de Chernobyl, multiplica-se o número de doentes estrangeiros que são acolhidos na Ilha.


Na era da mundialização neo-liberal, o internacionalismo cubano é irracional ou irrealista? Ele é simplesmente exemplar de humanidade e faz da utopia uma prática quotidiana: apesar das suas dificuldades, um povo decidiu oferecer os seus recursos humanos e materiais para a construção de “ outro mundo” , solidário. Quem pode, na sua consciência, condená-lo?
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Disponível em: http://resistir.info/

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