terça-feira, 29 de julho de 2008

Um beijo

Um minuto o nosso beijo / Um só minuto; no entantoNesse minuto de beijo / Quantos segundos de espanto!Quantas mães e esposas loucas / Pelo drama de um momentoQuantos milhares de bocas / Uivando de sofrimento!Quantas crianças nascendo / Para morrer em seguidaQuanta carne se rompendo / Quanta morte pela vida!Quantos adeuses efêmeros / Tornados o último adeusQuantas tíbias, quantos fêmures / Quanta loucura de Deus!Que mundo de mal-amadas / Com as esperanças perdidasQue cardume de afogadas / Que pomar de suicidas!Que mar de entranhas correndo / De corpos desfalecidosQue choque de trens horrendo / Quantos mortos e feridos!Que dízima de doentes / Recebendo a extrema-unçãoQuanto sangue derramado / Dentro do meu coração!Quanto cadáver sozinho / Em mesa de necrotérioQuanta morte sem carinho / Quanto canhenho funéreo!Que plantel de prisioneiros / Tendo as unhas arrancadasQuantos beijos derradeiros / Quantos mortos nas estradas!Que safra de uxoricidas / A bala, a punhal, a mãoQuantas mulheres batidas / Quantos dentes pelo chão!Que monte de nascituros /Atirados nos baldiosQuantos fetos nos monturos / Quanta placenta nos rios!Quantos mortos pela frente / Quantos mortos à traiçãoQuantos mortos de repente / Quantos mortos sem razão!Quanto câncer sub-reptício / Cujo amanhã será tardeQuanta tara, quanto vício / Quanto enfarte do miocárdioQuanto medo, quanto pranto / Quanta paixão, quanto luto!...Tudo isso pelo encanto / Desse beijo de um minuto:Desse beijo de um minuto / Mas que cria, em seu transporteDe um minuto, a eternidade / E a vida, de tanta morte.

Vinícius de Moraes
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