quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Cracatoa Simplesmente Sumiu

Um envelope vazio mas cheio
Posted: 01 Sep 2008 06:45 AM CDT
Para Júlia,que tentame ensinara contar históriasA vidraça fechada jamais impede a luz de entrar. Nem a cortina impede, a cortina que dá a tudo uma cor quente ainda que esmaecida, espalhada pelo quarto como se estivéssemos em outro mundo. Acordo antes de você e, nu, levanto-me. De pé, descalço, verifico que lá fora está frio e o quarto permanece aquecido, pois dormindo cuidamos de aquecê-lo. E, na janela, com cuidado, afasto o pedaço de pano que nos distancia do planeta Terra nesta manhã. O sol ainda não se levantou por detrás da montanha, mas a luminosidade o anuncia. Acho que nasci antes, para surpreender essa bola de fogo.
Você dorme e sinto-me feliz por você poder dormir assim independente, sem precisar do meu calor e eu poder olhá-la com a simplicidade que só os que dormem têm. Na varanda, para além da fina camada de vidro que me separa do orvalho, está o jasmim que você me deu. Daqui a poucos meses ele dará sua primeira flor.
Uma flor de jasmim não sabe falar.
Sei que você certa vez, criança, descobriu-se com uma estranha ansiedade. De repente, sentiu um amor tão grande por seus pais, tão grande, que não sabia como demonstrá-lo. Eu gostaria de poder contar essa história como quem conta uma fábula ao filho antes de dormir.
Então, certa feita, ou era uma vez, uma pequena menina de longos cabelos lisos e belos como lisas e belas eram as águas do riacho que passava perto, mas não muito perto, de sua casa, de perfume doce como doces eram as mesmas águas, sentiu-se tomada por algo líquido como líquido era aquele riacho que entre as margens corria pelo tempo e para sempre em direção ao mar. Sentiu-se a menina assim e havia tanto daquilo dentro de si que começou a chorar.
Mas ela, na sua pequena sabedoria de pequena menina de longos cabelos lisos e doce perfume, ainda não conseguia entender. Pois não fazia sentido chorar se ela estava feliz.
Então, ela debruçou-se na beira do riacho, com as lágrimas que não paravam de correr, e perguntou-lhe:
- Riacho, ó riacho, que corre pelo tempo e para sempre em direção ao mar, conta-me porque estou tão feliz e ainda assim choro…
Ao que o riacho respondeu:
- Menina, ó menina, de longos cabelos lisos e belos, como lisas e belas são minhas águas, choras porque o que guarda aí dentro é algo de grande tamanho e valor.
- Mas ainda não entendo, não consigo entender por que choro - disse a menina.
Ao que o riacho respondeu:
- Choras porque choras, como eu corro porque corro para o mar, porque o amor que eu por ele sinto tão grande é que não posso evitar de ir até ele e a ele me juntar. Suas lágrimas são lágrimas de alegria, como alegre é meu marulhar.
E então a menina entendeu o que devia fazer. Recolheu todas as lágrimas, que lagrimou até o fim, até secar, até ficarem todas dentro de um envelope. Ficaram guardadas ali e protegidas. E, do lado de fora, escreveu o nome de seus pais, os destinatários.
Feliz levava sua cartinha na mão enquanto voltava para casa. Mas naquele dia fazia muito calor e o sol, de crespos e revolutos cabelos louros, resolveu conversar com ela:
- Menina, menina, ó menina, de longos cabelos lisos e belos, como lisas e belas são as águas do riacho, para onde vais assim tão fagueira?
- Vou levar este envelope para meus pais. Nele está todo o amor que por eles sinto. E ele é muito grande como grande é o amor do riacho, tão grande que ele não pode evitar de ao mar se juntar. Por isso levo este envelope, com todas as lágrimas que chorei, pois são lágrimas de alegria, como alegre é do riacho o marulhar.
E assim seguiu a menina o seu caminho.
Mas como naquele dia estava muito calor, o vento, de cabelos mais longos que a menina, porém da cor do ar, decidiu soprar, soprar e soprar, para aliviar a lida dos que nos campos trabalhavam sem parar. E, ao encontrar a menina, resolveu também conversar com ela:
- Menina, menina, ó menina, de longos cabelos lisos e belos, como lisas e belas são as águas do riacho, para onde vais assim tão fagueira?
E ela respondeu tal e qual havia respondido para o sol, de crespos e revolutos cabelos louros:
- Levo este envelope para meus pais. E dentro dele vai um amor tão grande quanto aquele que o riacho sente pelo mar, tão grande que ele não pode evitar de, no final, com ele se encontrar. São lágrimas de alegria, como alegre é do riacho o marulhar.
E, então, chegando em casa, entregou a seus pais o envelope, como quem entrega o grande presente de sua vida.
- Toma papai, toma mamãe este presente que vos trago. Neste envelope lacrado está todo o amor que aos dois dedico.
E os dois abriram o envelope e no envelope nada havia.
O sol, de crespos e revolutos cabelos louros, o vento, de cabelos mais longos que a menina porém da cor do ar, secaram todas as lágrimas que no envelope estavam, ainda que sem maldade e sem querer.
- Nos enganaste, pequena? Nada há neste envelope - disseram os pais com um sorriso, diante da brincadeira da menina.
E ela ficou muito triste pois no envelope ele guardara todo amor que ela sentia e esse amor evaporara. Mas nem de tristeza conseguia chorar, pois suas lágrimas, no momento, haviam se esgotado. Não sabia o que fazer. Saiu correndo e voltou para o riacho.
- Riacho, ó riacho, de águas lisas e belas como meus cabelos são, de perfume doce como o meu, as lágrimas que guardei evaporaram e meus pais acham que fiz brincadeira do amor que por eles sinto e do que eles por mim sentem.
- Menina, ó menina, de longos e lisos cabelos, longos e lisos como minhas águas, não te afobes. Certas coisas só o tempo explica e até um envelope vazio tem uma explicação para o tempo.
Então, o tempo passou, passou e passou. E a menina cresceu, cresceu e cresceu. E até esqueceu daquela história. E quando o tempo acabou de passar, passou mais um pouco ainda. E, depois do tempo passar mais um pouco ainda, foi quando um dia a menina lembrou daquilo tudo. E, nesse dia, com o entendimento que só o tempo-que-passa-passa-e-passa dá, ela contou toda aquela história a seus pais. Que, finalmente compreenderam o tamanho do amor que ela possuía, de uma maneira que não poderiam entender se, naquele dia em que a história acontecia, vissem as lágrimas dentro daquele envelope. Afinal, ora, era só um envelope molhado. Ainda que por lágrimas. Ainda que de alegria. Certos amores, de tão grandes, precisam de tempo para serem assimilados.
E todos se abraçaram e foram felizes para sempre, sempre e sempre como para sempre corre o riacho para o mar.
Por isso cuido tão bem dessa planta que agora enfeita minha varanda. Diariamente verifico com o dedo se a terra ainda está úmida - e como é doce o contato da terra com a pele - e se não estiver trago-lhe água. Por isso também eu trouxe outras plantas para fazer companhia a ela, e pela minha conta são nove amores perfeitos, um ficus, uma muda de lanternas-japonesas além das pequenas plantinhas tão bem alcunhadas de suculentas.
Por isso.
Porque sei que uma flor de jasmim não sabe falar. Mas essa primeira, que sairá até a privamera, talvez um pouco antes, talvez um pouco depois, essa primeira flor de jasmim que nascerá, ela falará por mim. Como um envelope vazio.
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