ENEM É COISA SÉRIA
É impressionante a clareza e a lucidez do neurocientista Miguel Nicolelis. Em entrevista a Conceição Lemes, Nicolelis compara o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ao SAT (standart admissions test) que existe desde 1901 nos EUA.
“Só os donos de cursinhos e aqueles que não querem a democratização do acesso à universidade podem ter algo contra o Enem”, afirma, indignado.
“Eu vi a entrevista do ministro Fernando Haddad ao Bom Dia Brasil, TV Globo. Que loucura! Como jornalistas que num dia falam de incêndio, no outro, de escola de samba, no outro, ainda, de esporte, podem se arvorar em discutir um assunto tão delicado como sistema educacional? Pior é que ainda se acham entendedores. Só no Brasil educação é discutida por comentarista esportivo!”
Nicolelis é professor da Universidade de Duke, nos EUA, e fundador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, no Rio Grande do Norte. E um dos maiores neurocientista do mundo. Seguem trechos da entrevista:
Viomundo — De um total de 3,4 milhões de provas aplicadas no sábado, houve problema incontornável em menos de 2 mil. Tem sentido detonar o Enem, como a mídia brasileira tem feito? E dizer que o Enem fracassou, como um ex-ministro da Educação anda alardeando?
Miguel Nicolelis — Sinceramente, de jeito algum — nem um nem outro. O Enem é equivalente ao SAT, dos Estados Unidos. A metodologia usada nas provas é a mesma: a teoria de resposta ao item, ou TRI, que é uma tecnologia de fazer exames. O SAT foi criado em 1901. Curiosamente, em outubro de 2005, entre as milhões de provas impressas, algumas tinham problema na barra de códigos onde o teste vai ser lido. A entidade que faz o exame não conseguiu controlar, porque esses erros podem acontecer.
Viomundo — A Universidade de Duke utiliza o SAT?
Miguel Nicolelis — Não só a Duke, mas todas as grandes universidades americanas reconhecem o SAT. É quase um consenso nos Estados Unidos. Apenas uma minoria é contra. E o Enem, insisto, é uma adaptação do SAT, que é uma das melhores maneiras de avaliação de conhecimento do mundo. O teste é a melhor forma de avaliar uniformemente alunos submetidos a diferentes metodologias de ensino. É a saída para homogeneizar a avaliação de estudantes provenientes de um sistema federativo de educação, como o americano e o brasileiro, onde os graus de informação, os métodos, as formas como se dão, são diferentes.
Viomundo — Qual a periodicidade do SAT?
Miguel Nicolelis – Aqui, o exame é aplicado sete vezes por ano. O aluno, se quiser, pode fazer três, quatro, cinco, até sete, desde que, claro, pague as provas. No final, apenas a melhor é computada. Vários estudos feitos aqui já demonstraram que o SAT é altamente correlacionado à capacidade mental geral da pessoa.
Todo ano as provas têm uma parte experimental. São questões que não contam nota para a prova. Servem apenas para testar o grau de dificuldade. Assim, a própria criançada vai ranqueando as perguntas, permitindo a ampliação do banco de questões. Outra peculiaridade do sistema americano é a forma de corrigir a prova. É desencorajado o chute.
Viomundo — Explique melhor.
Miguel Nicolelis — Resposta errada perde ponto, resposta em branco, não. Por isso, o aluno pensa muito antes de chutar, pois a probabilidade de ele errar é grande. Então se ele não sabe é preferível não responder do que correr o risco de responder errado.
Viomundo – Interessante …
Miguel Nicolelis – Na verdade, o SAT é maneira mais honesta, mais democrática de avaliar pessoas de lugares diferentes, com sistemas educacionais diferentes, para tentar padronizar o ingresso. Aqui, nos EUA, a molecada faz o exame e manda para as faculdades que quer frequentar. E as escolas decidem quem entra, quem não entra. O SAT é um dos componentes para essa avaliação.
Viomundo — Aí tem cursinho para entrar na faculdade?
Miguel Nicolelis — Tem para as pessoas aprenderem a fazer o exame, mas não é aquela loucura da minha época. Era cheio de cursinho para todo lugar no Brasil. Cursinho é uma máquina de fazer dinheiro. Não serve para nada a não ser para fazer o exame. Por isso ouso dizer: só os donos de cursinho e aqueles que não querem democratizar o acesso à universidade podem ter algo contra o Enem.
Viomundo –Mas o fato de a prova ter erros é ruim.
Miguel Nicolelis — Concordo. Mas os erros vão acontecer. Em 1978, quando fiz a Fuvest (vestibular unificado no Estado de São Paulo), teve pergunta eliminada, pois não tinha resposta. Isso acontece desde o tempo em que havia exame para admissão [ao primeiro ginasial, atualmente 5ª série do ensino fundamental) na época das cavernas (risos). Você não tem exame 100% correto o tempo inteiro.
Então, algumas pessoas estão confundindo uma metodologia bem estudada, bastante conhecida e aceita há décadas, com problemas operacionais que acontecem em qualquer processo de impressão de milhões de documentos. Na dimensão em que aconteceram no Brasil está dentro das probabilidade de fatalidades.
Viomundo — Em 2009, também houve problema, lembra-se?
Miguel Nicolelis — No ano passado foi um furto, foi um crime. O MEC não pode ser condenado por causa de um assalto, que é uma contigência e nada tem a ver com a metodologia do teste.
Só que, infelizmente, gerou problemas operacionais para algumas universidades, que não consideraram a nota do Enem nos seus vestibulares. Isso não quer dizer que elas não entendam ou nãoaceitam o teste. As provas do Enem são muito mais democráticas, mais racionais e mais bem-feitas do que os vestibulares de qualquer universidade brasileira.
Eu fiz a Fuvest. Naquela época, era muito ruim. Não media nada. E, ainda assim, a gente teve de se sujeitar àquilo, para entrar na faculdade a qualquer custo.
Viomundo — Fez cursinho?
Miguel Nicolelis – Não. Eu tive o privilégio de estudar numa escola privada boa. Mas muitas pessoas que não tinham educação de alto nível eram obrigadas a recorrer ao cursinho para competir em condições de igualdade.
Mas o cursinho não melhora o aprendizado de ninguém. Cursinho é uma técnica de aprender a maximizar a feitura do exame. É quase um efeito colateral do sistema educacional absurdo que até recentemente tínhamos no Brasil. É um arremedo. É um aborto do sistema educacional que não funciona.
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