1 INTRODUÇÃO
O contrato de transporte possui uma grande relevância social e jurídica, dada a grande quantidade de pessoas que fazem uso diário dos sistemas de transportes, principalmente nos grandes aglomerados urbanos, gerando, sem dúvida alguma, uma série de questões que cabe ao Direito responder.
A despeito da importância do tema, não foi o contrato de transporte referido pelo Código Civil de 1916. Isso se deve em razão de ter sido o projeto elaborado por Clóvis Beviláqua na última década de 1800, quando o transporte coletivo estava começando a obter o seu deslinde. Enquanto o projeto do Código Civil Brasileiro tramitava no Congresso por quase trinta anos, o transporte coletivo foi se desenvolvendo, fazendo-se necessária a elaboração de uma lei que o regulamentasse.
Surge então o Decreto nº 2.681/1912, mais conhecido como Lei das Estradas de Ferro, que permaneceu em vigor até o advento do Código Civil de 2002, que disciplinou o contrato de transporte em seus artigos 734 a 756, incorporando o texto da Lei das Estradas de Ferro e as posições e entendimentos dominantes traçados pela doutrina e pela jurisprudência nos quase cem anos de sua vigência.
2 OS TRÊS ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
Em se tratando de acidentes de trânsito, a responsabilidade do transportador deve ser analisada por, ao menos, três aspectos diferentes. O primeiro é com relação aos empregados do transportador. O segundo, é em relação à terceiros. E por último, em relação aos passageiros.
Tais aspectos são de fácil vislumbre se tomar-se por exemplo um acidente onde um ônibus urbano atropela um pedestre, ficando feridos vários passageiros e o próprio motorista que conduzia o veículo.
O pedestre atropelado não possui com o transportador qualquer relação jurídica contratual. Do acidente é que vai decorrer o vínculo jurídico determinante do dever de indenizar. É o pedestre um terceiro, sendo a responsabilidade da empresa proprietária do ônibus extracontratual.
Nesse contexto cabe destacar qua as empresas que prestam o serviço de transporte coletivo, nada mais são que pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviço público. O que significa dizer que o pedestre não precisa provar culpa do transportador ou de seu preposto para fazer jus a indenização, pois tem perfeita aplicabilidade o artigo 37 parágrafo 6º da Constituição de 1998, que traz expresso que: "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros [...]". Assim, da mesma forma como a responsabilidade estatal, pode ser afastada a responsabilidade do transportador somente poderá ser afastada caso este prove alguma das causas que excluem o próprio nexo causal, quais sejam o caso fortuito, a força maior e o fato exclusivo de terceiro ou da vítima.
Dessa forma também é o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves:
Como o referido dispositivo constitucional prevê a responsabilidade objetiva das permissionárias de serviço público por danos que causarem a terceiros, entendendo-se por essa expressão os que não têm com elas relação jurídica contratual, a sua aplicação está restrita aos casos de responsabilidade extracontratual, só podendo ser afastada se o transportador provar caso fortuito ou força maior e culpa exclusiva da vítima, bem como fato exclusivo de terceiros. [1]
Deve ser destacado, que o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14, atribui a responsabilidade objetiva ao fornecedor de serviços. Ainda, promove uma equiparação ao status de consumidor de todas as vítimas do evento, ou seja, o pedestre, muito embora não tivesse uma relação contratual com o fornecedor do serviço, sofre as conseqüências do acidente de consumo, equiparando-se, por esta razão, a um consumidor.
Porém, a natureza da responsabilidade – objetiva – não mudou com o advento do Código de Defesa do Consumidor, conforme ensina Sérvio Cavalieri Filho:
Nada mudou o Código de Defesa do Consumidor quanto à natureza dessa responsabilidade porque já era objetiva a partir da Constituição de 1988; mudou, entretanto, a sua base jurídica. Não mais necessitamos agora do mecanismo da responsabilidade pelo fato de terceiro porque o transportador não responde pelo fato do preposto (art. 932, III, do novo Código Civil, que corresponde ao art. 1.521, III, Código de 1916), mas sim por fato próprio – o defeito do serviço. [2]
Com relação ao motorista, retornando ao exemplo dado anteriormente, a responsabilidade será derivada de acidente de trabalho, em razão da relação de emprego existente. A indenização deverá ser pleiteada junto ao Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS. Porém, em se apurando dolo ou culpa do empregador, pode também se pleitear indenização em face do empregador, com amparo no dispositivo do artigo 7º, XXVIII da Constituição Federal.
Por último, com relação ao passageiro a responsabilidade do transportador será contratual, pois se funda no contrato de transporte celebrado. Inegavelmente é esse o aspecto mais relevante do contrato de transporte, razão pela qual merece um estudo mais detido.
3 CONTRATO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
A responsabilidade contratual do transportador começou a ser suscitada quando da implantação de locomotivas a vapor, o primeiro meio de transporte coletivo existente até então.
Aliás, o contrato de transporte teve fundamental importância no desenvolvimento do estudo dos contratos. Segundo Sergio Cavalieri Filho, ao tempo da implantação dos sistemas de transporte coletivo os doutrinadores não faziam diferenciação entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, diferença essa introduzida pelos juristas franceses, com o intuito de ajustar a responsabilidade do transportador às novas realidades sociais. [3] O autor assim explicita a importância da diferenciação e os objetivos almejados quando do seu desenvolvimento:
Sabemos todos que, a rigor, não há diferenciação substancial entre a responsabilidade contratual e a extracontratual; ambas têm por essência a violação de um dever jurídico; também nas duas a noção de culpa é a mesma – a violação do dever de cuidado. Os juristas franceses, entretanto, em busca de uma situação jurídica mais confortável, mais favorável para o passageiro, que não aquela de ter que provar a culpa do transportador, engendraram a responsabilidade contratual, na qual, diferentemente da responsabilidade extracontratual, já existe entre as partes um vínculo jurídico preestabelecido, e o dever jurídico violado está perfeitamente configurado nessa relação jurídica. A norma convencional, já define o comportamento dos contratantes, que ficam adstritos, em sua observância, a um dever específico. E foi justamente o contrato de transporte que serviu de cobaia, vamos assim dizer, serviu de instrumento de estudo do qual resultou a doutrina da responsabilidade contratual. [4]
O contrato de transporte se caracteriza por ser um contrato de adesão, assim entendido em razão de suas cláusulas serem previamente estipuladas pelo transportador, cabendo ao passageiro apenas aderir às disposições.
Além disso, o contrato de transporte é um contrato consensual, visto que para sua celebração basta o simples encontro de vontades. É um contrato bilateral, uma vez que cria direitos e obrigações para ambas as partes. Por fim, é um contrato comutativo, vez que há um equilíbrio econômico entre as prestações.
Uma das mais importantes características do contrato de transporte é a chamada cláusula de incolumidade. Essa cláusula, implícita no contrato de transporte, implica no fato de não ser a obrigação do transportador apenas de meio ou de resultado, mas também de garantia. Ou seja, tem o transportador o dever de zelar pela incolumidade do passageiro, a fim de evitar que qualquer dano possa emergir durante a vigência do contrato. O transportador assume a obrigação de conduzir o passageiro incólume ao seu destino e fica obrigada a reparar o dano por ele sofrido. Uma vez descumprida essa obrigação de levar o passageiro são e salvo ao seu destino, exsurge o dever de indenizar do transportador, independentemente de culpa.
4 A RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
Muito discutiu a doutrina acerca da responsabilidade do transportador, se era essa objetiva ou subjetiva com culpa presumida. Tal discussão tinha como centro de discussão o artigo 17 do Decreto nº 2.681/1912, que assim dispunha:
Art. 17. As estradas de ferro responderão pelos desastres que nas suas linhas sucederem aos viajantes e de que resulta a morte, ferimento ou lesão corpórea.
A culpa será sempre presumida, só se admitindo em contrário alguma das seguintes provas:
I – caso fortuito ou força maior;
II – culpa do viajante, não concorrendo culpa da estrada.
Há, sem dúvida alguma uma contradição no texto legal, pois ao analisar a literalidade do artigo verifica-se que primeiramente ele se refere à responsabilidade subjetiva do transportador, com culpa presumida e posteriormente não admite que o transportador faça prova de que não procedeu com culpa, podendo apenas alegar as excludentes expressamente trazidas nos incisos I e II.
Porém, antes de analisar essa aparente contradição, cabe uma breve diferenciação entre responsabilidade subjetiva com culpa presumida e responsabilidade objetiva, no que toca a um de seus aspectos mais relevantes, qual seja a prova. Enquanto na responsabilidade subjetiva com culpa presumida o que ocorre é a inversão do ônus da prova, cabendo ao causador do dano provar que não agiu com culpa, e em conseguindo demonstrar afasta a sua responsabilidade, na responsabilidade objetiva o fator culpa é irrelevante, pois o causador só se exime da obrigação provando a ocorrência de caso fortuito, força maior, fato exclusivo da vítima ou de terceiro, que excluirão o nexo causal.
Ao melhor analisar o artigo 17 verifica-se que o que ocorreu de fato foi a adoção de uma terminologia imprecisa por parte do legislador ao tratar de culpa presumida. Isso porque as disposições do artigo 17 não permitem que o transportador faça prova de que não agiu com culpa. Cabia a ele, para elidir sua responsabilidade, demonstrar a ocorrência de alguma das excludentes previstas nos incisos I e II, quais sejam a caso fortuito ou força maior e a culpa do viajante, não concorrendo culpa da estrada de ferro.
Assim, segundo o entendimento dominante, muito embora parecesse que a lê tratava de presunção de culpa, tratava na verdade de presunção de responsabilidade contra o transportador, que só podia ser elidida por demonstração de alguma das hipóteses de exoneração nela mesmo prevista. Trata-se, portanto, de hipótese de responsabilidade objetiva.
O Código de Defesa do Consumidor mudou o fundamento da responsabilidade civil do transportador, que passou a ser um o defeito do produto ou serviço, causador de um acidente de consumo. Manteve, porém, a responsabilidade objetiva admitindo como excludente apenas a comprovada inexistência do defeito e a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, previstas no artigo 14, § 3º, incisos I e II.
Um detalhe importante é que de acordo com o Código de Defesa do Consumidor a culpa concorrente do consumidor é irrelevante, não sendo considerada como excludente, nem como causa de redução da indenização. Porém, como se verá a seguir, o Código Civil mudou esse entendimento, passando a admitir a culpa concorrente da vítima como atenuante da responsabilidade do transportador.
O Código Civil de 2002 compilou e consagrou esses entendimentos, resultando na disposição do artigo 734, que prescreve "o transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente de responsabilidade". Contudo, tal disposição possui certas peculiaridades no que tange à exclusão da responsabilidade do transportador. Não se pode interpretar em sua literalidade, razão pela qual, dada a sua relevância, deverá ser abordada com mais profundidade a seguir.
3 A EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
Em uma primeira análise, o artigo 734 do Código Civil parece fornecer a idéia de que apenas a força maior pode elidir a responsabilidade de indenizar, ficando de fora as demais excludentes do nexo causal:
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Sergio Cavalieri Filho afirma que o Código Civil disciplinou a responsabilidade do transportador em mais de um artigo, citando como exemplo o artigo 738 e parágrafo único, que se refere à culpa da própria vítima. Conclui afirmando que se faz necessário examinar a disciplina do Código em conjunto. [5]
Contudo, para Carlos Roberto Gonçalves, muito embora não mencionadas expressamente, devem ser admitidas as excludentes da culpa exclusiva da vítima e do fato exclusivo de terceiro, em razão dessas causas também excluírem o nexo causal. Afirma, ainda, que o fato do legislador não mencionar o caso fortuito juntamente com a força maior, diferentemente do que ocorre nos demais dispositivos do Código, revela uma intenção do legislador de considerar como excludentes da responsabilidade do transportador somente os acontecimentos naturais, e não os fatos decorrentes da conduta humana. [6]
Surge nesse momento a necessidade de explicitar o que vem a ser, conforme doutrina desenvolvida por Agostinho Alvim e seguida pelos civilistas modernos, o fortuito interno e o fortuito externo, entendimento determinante para se afastar ou não a responsabilidade do transportador.
O fortuito interno é o fato imprevisível e inevitável que se relaciona com os riscos da atividade desenvolvida pelo transportador. É ligado à pessoa, à coisa ou à empresa do agente. Pode-se citar como exemplo o estouro de um pneu do veículo, a quebra da barra de direção, ou o mal súbito do motorista. Mesmo sendo acontecimentos imprevisíveis, estão ligados ao negócio explorado pelo transportador, razão pela qual o fortuito interno não o exonera do dever de indenizar.
Já o fortuito externo se caracteriza também por ser um fato imprevisível e inevitável, porém é alheio à organização do negócio do transportador. São fatos da Natureza tais como as enchentes, os raios, terremotos, etc... Sendo denominado por alguns como força maior. Apenas o fortuito externo, ou força maior, tem o condão de excluir a responsabilidade do transportador.
Também a culpa exclusiva da vítima exclui a responsabilidade do transportador. Ela é afastada em razão de que a pessoa a dar causa ao evento danoso é o próprio passageiro, e não o transportador.
A culpa exclusiva do passageiro pode ser facilmente verificada nos chamados casos de surfismo ferroviário, onde o passageiro, podendo viajar no interior do trem, opta por viajar no teto. A jurisprudência inclusive já se manifestou nesse sentido:
Recebendo o fato, como desenharam as instâncias ordinárias, hei que a vítima, exibicionista, ao viajar no teto do vagão do comboio ferroviário, o fez assumindo o risco de infortúnio. É o caso de sua exclusiva culpa. (STJ – REsp 35.103-4 Rel. Min. Fontes de Alencar)
É necessário dizer que o passageiro deve manter uma conduta adequada às regras do transporte, sujeitando-se às normas estabelecidas pelo transportador. O Código Civil estabelece tal obrigação no artigo 738, caput:
Art. 738. A pessoa transportada deve sujeitar-se às normas estabelecidas pelo transportador, constantes no bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abstendo-se de quaisquer atos que causem incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifiquem o veículo, ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço.
É possível, também, vislumbrar a culpa concorrente do passageiro e seus efeitos, na previsão do parágrafo único do artigo 738, a seguir transcrito.
Art. 738. [...]
Parágrafo único. Se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à transgressão de normas e instruções regulamentares, o juiz reduzirá eqüitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.
O Código Civil permite a atenuação da responsabilidade do transportador se o passageiro contribuiu para o evento danoso. A redução do montante da indenização deve ser proporcional ao grau de culpa do passageiro. Passa a existir, desta forma, uma discrepância entre o que estabelece o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil. Porém, no entendimento de Carlos Roberto Gonçalves, deve prevalecer o que dispõe o Código Civil, pois esse é um princípio que já se havia adotado no capítulo específico da Responsabilidade Civil, no artigo 945. Não sendo mais é possível, nos casos de culpa concorrente da vítima, a condenação do transportador em pagar indenização integral aos passageiros, como vinham decidindo os tribunais. [7]
Há ainda o fato exclusivo de terceiro, como excludente da responsabilidade do transportador. Para Sergio Cavalieri Filho, o terceiro pode ser assim definido:
Por terceiro deve-se entender alguém estranho ao binômio transportador e passageiro; qualquer pessoa que não guarde nenhum vínculo jurídico com o transportador, de modo a torná-lo responsável pelos seus atos, direta ou indiretamente [...] (8)
Assim, além de não fazer parte da relação transportador/passageiro, também não pode, o terceiro, estar vinculado de alguma forma ao transportador, como o motorista assim está, através de um vínculo de emprego, por exemplo.
O fato exclusivo de terceiro como uma das causas excludentes da responsabilidade do transportador já foi muito discutido, tanto na doutrina quanto na jurisprudência.
Para melhor entendimento, necessário é perquirir se o fato de terceiro é doloso ou culposo.
Caso o fato de terceiro seja culposo, este fica compreendido no âmbito da organização do negócio do transportador, se liga ao risco da atividade que desenvolve. Assim sendo, o fato culposo d terceiro se caracteriza por seu um fortuito interno, que como visto anteriormente não afasta a responsabilidade do transportador
Nesse mesmo sentido se manifesta Aguiar Dias:
O fato de terceiro não exclui a sua responsabilidade [do transportador]; apenas lhe dá direito de regresso contra o causador do dano [...] assim, qualquer que seja o fato de terceiro, desde que não seja estranho à exploração, isto é, desde que represente risco envolvido na cláusula de incolumidade, a responsabilidade do transportador é iniludível, criando, entretanto, o direito de regresso em favor do transportador sem culpa no desastre. (9)
O Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 187, que posteriormente resultou no atual artigo 735 do Código Civil, a seguir transcrito:
Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.
Há que se notar que o artigo dispõe apenas sobre a culpa de terceiro, silenciando acerca do dolo.
Caso o fato de terceiro seja doloso, não pode ser considerado um fortuito interno, pois não guarda qualquer relação com a organização do negócio do transportador, nem com os riscos deste negócio. Assim sendo, deve ser considerado um fortuito externo, que como visto exclui o nexo causal, exonerando o transportador da responsabilidade.
Por fim, a doutrina faz referência à eventos que estão se tornando comuns como o arremesso de pedra contra trem ou ônibus e os assaltos no curso da viagem.
Primeiramente a jurisprudência vinha entendendo que o transportador era responsável por indenizar o passageiro ferido ou roubado no interior do veículo que realizava o transporte coletivo, em razão de fato praticado por terceiro, utilizando como argumento a Súmula 187 do Supremo Tribunal Federal.
Contudo, com a evolução dos julgados, passou-se a se firmar o entendimento no sentido de considerar esses eventos como fortuito externo, inteiramente alheios ao risco da atividade de transporte. Ademais, seria do Estado a responsabilidade de prevenir eventos dessa natureza, não podendo o transportador.
Vale destacar um julgado que exterioriza esse entendimento jurisprudencial:
Responsabilidade civil – Estrada de ferro – Lesões em passageira, atingida por pedra atirada do exterior da composição. O fato de terceiro que não exonera de responsabilidade o transportador é aquele que com o transporte guarda conexidade, inserindo-se nos riscos próprios do deslocamento. O mesmo não se verifica quando intervenha fato inteiramente estranho, devendo-se o dano à causa alheia ao transporte em si. A prevenção de atos lesivos, de natureza do que se cogita na hipótese, cabe à autoridade pública, inexistindo fundamentos para transferir a responsabilidade a terceiros. (STJ – REsp 13.351-RJ Rel. Min. Eduardo Ribeiro)
A jurisprudência só tem responsabilizado o transportador quando este é conivente ou omisso com relação aos eventos danosos praticados por terceiro. Se determinado local é comum a prática de roubos ou atentados, cabe à empresa tomar as devidas cautelas para evitar que tal situação continue, ou, ao menos, alertar a autoridade pública para que esta tome as providências necessárias. Em não tomando essas providências, o transportador fica sujeito a responder por eventuais danos causados aos passageiros.
4 O TRANSPORTE GRATUITO
Em se tratando de transporte gratuito, há uma grande controvérsia tanto na doutrina quanto na jurisprudência.
Na lição de Sergio Cavalieri Filho, para melhor entender a problemática que envolve o transporte gratuito deve-se fazer uma distinção entre transporte aparentemente gratuito e transporte puramente gratuito. [10]
O transporte aparentemente gratuito é aquele onde há algum interesse patrimonial do transportador em realizar o transporte, ainda que indireto, como na hipótese do patrão que oferece transporte aos empregados para levá-los ao trabalho.
Também se configura transporte aparentemente gratuito quando se está diante do transporte dito como gratuito, contudo o preço do transporte está embutido no valor global da tarifa. É o caso do transporte de idosos no serviço de transporte coletivo municipal. Por óbvio que tal transporte não é gratuito, vez eu tem o seu custo incluído no valor global da tarifa, repassado aos demais usuários do sistema.
Em razão de suas características, o transporte aparentemente gratuito não enseja qualquer razão para modificar a responsabilidade do transportador. Assim sendo, a responsabilidade continua sendo objetiva, somente podendo ser elidida pelo fato exclusivo da vítima, pelo fortuito externo e pelo fato exclusivo de terceiro.
O transporte puramente gratuito é aquele que é realizado no exclusivo interesse do transportado, por cortesia e liberalidade do transportador. O exemplo mais comum é o de dar uma carona a um amigo.
Embora muitos doutrinadores entendam que há, neste caso, aplicam-se as regras do contrato de transporte, parece evidente que inexiste, nesta hipótese, um contrato de transporte.
É o entendimento de Sergio Cavalieri Filho, assim explicitado:
Em que pese às doutas opiniões em contrário, estamos com aqueles que entendem não ser possível aplicar as regras da responsabilidade contratual ao transporte puramente gratuito pela simples razão de não existir, nele, contrato de transporte. (11)
Em verdade, a comutatividade e a onerosidade são requisitos essenciais para que se caracterize o contrato de transporte. Desta forma, o preço do transporte constituiria a principal obrigação do passageiro e o transporte do passageiro incólume seria a principal obrigação do transportador. A onerosidade não precisa ser caracterizada pelo pagamento em dinheiro, podendo configurar-se da mesma forma que se configura no transporte aparentemente gratuito. Todavia, não há como se esquivar da contraprestação.
Há ainda que se considerar que quem oferece gratuitamente o transporte não quer se obrigar a um dever de vigilância tão severo quanto àquele que é inerente a quem presta o serviço de transporte remunerado. Também quem solicita o transporte não pode exigir do transportador de cortesia os rigores da cláusula de incolumidade; o passageiro acaba por assumir os riscos da viagem.
Assim, não parece ser razoável que o transportador que faz um obséquio, sem auferir qualquer tipo de vantagem, venha ser compelido a indenizar os danos sofridos pelo passageiro durante o seu trajeto. Deve o transportador, contudo, agir dentro na normalidade, respondendo por qualquer excesso na seara da responsabilidade aquiliana e não contratual.
Alguns juristas, na vigência do Código Civil de 1916, sustentavam que o transporte puramente gratuito era um contrato benéfico, onde o transportador só responderia por dolo, nos termos do artigo 1.057 do referido diploma. Porém, dentro dessa linha, tais juristas não descartavam a responsabilização do transportador ao agir com culpa grave. Muito embora fosse forçar o texto legal ao equiparar-se culpa grave à dolo, foi nesse sentido que firmou-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, culminando na edição da Súmula 145:
Súmula 145 – No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave
O Código Civil de 2002 pacificou a matéria, assim dispondo em seu artigo 736:
Art. 736. Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.
Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.
Assim, definiu o Código Civil que o transporte puramente gratuito não configura um contrato de transporte.
Assim, a solução mais justa para se resolver as controvérsias existentes no transporte puramente gratuito é a aplicação dos princípios da responsabilidade aquiliana.
Uma vez que o transporte gratuito não constitui negócio jurídico, deve-se aplicar a teoria clássica da responsabilidade civil extracontratual, ou aquiliana, para pacificar a obrigação de indenizar.
Notas
1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 7. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 277.
2 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 4. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 290.
3 ______. op. cit. p. 293.
4 ______. op. cit. p. 293.
5 ______. op. cit. p. 297.
6 GONÇALVES, Carlos Roberto. op. cit. p. 281.
7 ______. op. cit. p. 282.
8 CAVALIERI FILHO, Sergio. op. cit. p. 301.
9 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v.I, p. 239.
10 CAVALIERI FILHO, Sergio op. cit. p. 309.
11 ______. op. cit. p. 310.
Rodrigo Binotto GrevettiAdvogado, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, Pós-graduando em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná/PUCPR
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